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Vermelho e negro

Espaço de informação alternativa e libertária on-line. Actualizado diariamente com informações de vários colectivos anti-autoritários portugueses, brasileiros e de outros países.

Memórias de Abril: a autogestão das empresas pelos trabalhadores, à margem dos patrões e dos comissários políticos

Abril 22, 2019

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A seguir ao 25 de Abril de 1974 dezenas e dezenas de fábricas entraram em regime de autogestão. Muitas porque os patrões as abandonaram  e ameaçaram mesmo levar as máquinas; outros porque os trabalhadores as ocuparam devido à deficiente gestão patronal que, em geral, acumulavam salários em atraso. Por todo o país sucederam-se as ocupações de fábricas, ainda antes das ocupações de terras. Foi um movimento generalizado que demonstrou as virtualidades da auto-organização operária. De referir que muitas destas empresas autogestionadas tinham uma parcela muito importante de mulheres, já que foram muitas as empresas da área do textil e das confecções que encetaram processo de luta no período inicial pós-25 de Abril. Uma dessas empresas foi a Sogantal. O libertário José Maria Carvalho Ferreira acompanhou este processo e relatou-o nas páginas duma pequena publicação ("O Futuro era Agora") destinada a assinalar os 20 anos do 25 de Abril e que recolheu diversos testemunhos de militantes de diversas áreas políticas. Entre os jornais que se fizeram eco deste movimento à margem dos patrões e dos comissários politicos e sindicais estiveram na primeira linha "A Batalha" e o "Combate" (aqui o 1º número com um grande destaque sobre a luta das trabalhadoras da Sogantal) , um jornal que se destacou pelo apoio às lutas autónomas dos trabalhadores (e que, nesta mesma publicação, é objecto de um artigo do Júlio Henriques, que fez parte do seu corpo redactorial) .

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Autogestão na Sogantal

 

José Maria Carvalho Ferreira, professor, 48 anos

 

Cheguei de Paris em Junho de 74, convencido de que vinha encontrar uma revolução democrático-burguesa clássica, controlada pelos militares, mas logo comecei a aperceber-me de que algo muito mais importante estava a acontecer.

Foi para mim uma grande experiência ter entrado em contacto com a luta da fábrica de confecções Sogantal, pertencente a patrões franceses, situada no Samouco (Montijo). Tinha umas 50 operárias, que ocuparam a empresa em Junho de 74, quando o gerente tentou responder com represálias às suas reivindicações de maiores salários, férias pagas e 13º mês.

Casos semelhantes estavam a dar-se noutras empresas mas aqui a ocupação assumiu uma radicalidade invulgar: supressão das cadências e dos horários obrigatórios; abolição das hierarquias; igualização dos salários; rotação das tarefas, inclusive de direcção; e, mais subversivo ainda, a decisão de encetar a venda directa da produção.

Estas decisões foram tomadas em assembleias gerais que se reuniam regularmente e às quais podiam assistir pessoas estranhas à fábrica. A comissão de trabalhadores era também de composição rotativa.

Tudo isto teve uma outra consequência da maior importância: as mulheres começaram a libertar-se da autoridade do marido e da família, dos valores patriarcais vigentes. Até aí, passavam o dia a trabalhar e a obedecer passivamente a ordens, tanto na fábrica como em casa, e não podiam deslocar-se sozinhas para lado nenhum. A partir daí, raparigas, na maioria de dezoito, vinte anos, passavam do trabalho na produção à discussão nas assembleias, faziam as contas da empresa, participavam nos piquetes de vigilância nocturna, deslocavam-se a vários pontos do país para vender a mercadoria, davam opinião sobre tudo. Claro que surgiram conflitos familiares e houve mesmo alguns divórcios.

A audácia sem paralelo deste grupo de operárias pode  compreender-se se tivermos em conta que partidos e sindicatos tinham nessa altura muito pouca influência na empresa. Entretanto, os problemas acumulavam-se. Foi primeiro a incursão dum grupo de mercenários, armados de pistolas, granadas, matracas, gases lacrimogéneos e com cães, que se introduziram na fábrica de madrugada. Dado o alerta por uma operária, uma parte da população do Montijo cercou as instalações e travou-se luta de que resultou um incêndio. Os sabotadores só foram retirados a salvo graças ao socorro da GNR e do COPCON.

Mas o principal problema era a dificuldade em vender a produção. A venda das roupas pelas próprias operárias era mal vista, mesmo pelos habitantes na zona, assustados por este atentado directo à sagrada e intocável propriedade privada. No Verão, com o apoio da solidariedade externa, ainda foi possível entrar em contacto com em presas em luta, como a Timex e sobretudo a TAP, que era na altura um cadinho revolucionário, e cujos operários passaram a absorver boa parte da produção da Sogantal.

Quando se desencadeia a greve na TAP e as oficinas são invadidas pela tropa, havia já um conjunto de empresas, creio que eram 36, com CTs que não estavam subordinadas ao PC, embora estivessem a ser infiltradas por grupos esquerdistas. A CT da TAP convocou uma reunião no Clube Atlético de Campo de Ourique (CACO), onde se formou a Interempresas e se apelou à greve geral de solidariedade contra a repressão militar. O apelo foi para ser impresso no sindicato dos têxteis mas o Agostinho Roseta, que viu, achou aquilo altamente incendiário e sabotou a impressão do manifesto.

Entretanto, na Sogantal, as dificuldades em escoar a produção foram-se acumulando. As diligências junto do Ministério do Trabalho e do Sindicato dos Têxteis, com vista à nacionalização da empresa ou à sua transformação em cooperativa, ficaram sem efeito. As operárias chegaram à conclusão de que a sua experiência fora muito além das das outras empresas. Tiveram que assentar os pés na terra e parar de sonhar. Enquanto isto, o Sindicato, a troco do apoio prestado à luta, começou a imiscuir-se nas decisões internas e a fomentar divisões. Por fim, depois duma longa agonia em que já não havia meios para subsistir, cada uma foi para seu lado. Isto foi já em 1976.

A pesar deste epílogo negativo - inevitável nas condições de isolamento em que este punhado de operárias se encontrou - a luta da Sogantal ficou como um a das mais avançadas experiências de autogestão operária em Portugal.

 

aqui; https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/futuro/O%20futuro%20era%20agora.pdf

mais sobre a sogantal: https://ephemerajpp.com/2018/04/27/luta-das-operarias-da-sogantal-agosto-1974/

jornais da sogantal: https://ephemerajpp.com/2012/11/10/jornal-da-sogantal/

 

Che Guevara: a verdade por detrás da lenda, por Larry Gambone

Abril 17, 2019

 

 

São Che

a verdade por detrás
da lenda do guerrilheiro heróico,
Ernesto Che Guevara

 

Larry Gambone

 

1997

 

Tradução da versão inglesa de
Red Lion Press, Montreal, 1997

 

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Índice:

 

O jovem Che ou "Don’t cry for me, Argentina".

As raízes fascistas da concepção do mundo do Che.

O Che stalinista.

O Che executor.

O Che burocrata.

A tragédia de Che Guevara.

O Che morreu pelos nossos pecados.

Notas.

 

Anexo: Os anarco-sindicalistas cubanos nos anos 1950.

 
Outras Leituras

 

Nota do Tradutor

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"O Che foi o ser humano mais completo da nossa época."

Jean-Paul Sartre     

 

     Uma camponesa acende uma vela ao santo e reza para que o seu filho fique bem e a colheita de batatas seja boa este ano. As suas preces, e as preces de outros camponeses, já antes foram atendidas, dizem os aldeões. "Parecia-se mesmo com Nosso Senhor ali deitado morto na escola", contava ela ao jornalista da televisão. O nome desse santo milagreiro? Ernesto Che Guevara! (*1)

     Não se riam desses camponeses. Não os olhem do alto da vossa arrogância de "mundo desenvolvido". Não há qualquer dúvida de que o Che "intervém" nas suas vidas fustigadas pela pobreza — tal como fazem todos os outros santos. E quem somos nós para pretender ter um conhecimento absoluto do mundo e do espírito humano e de todo o seu funcionamento?

     O que diria o Che do incenso e das velas queimados em seu nome? Enquanto militante comunista e ateu, teria rejeitado tudo isso como superstição primitiva herdada de um passado reaccionário. Que ironia que tal pessoa se tenha tornado um santo. Mas não são apenas os camponeses bolivianos que veneram o guerrilheiro morto. Trinta anos após o seu assassinato, a sua imagem está colada nos muros de metade das residências universitárias do mundo. O seu olhar severo e ascético fixa-nos desde inúmeras camisolas, autocolantes e distintivos. A mística do Che Guevara está divulgada universalmente.

     Não adianta perguntar se ele merece essa idolatria. À primeira vista, é fácil responder afirmativamente sem qualquer reserva. Ele é aquele que tinha a posição número dois em Cuba e que dela desceu para combater na selva pelo que acreditava ser a libertação. Sofrendo de asma e com um reduzido grupo de seguidores, foi perseguido e assassinado pelo exército boliviano. Guevara era também a personagem romântica perfeita — belo, carismático e sinceramente amado pelas mulheres. Não um palhaço intelectual sem vida como Staline, nem um perverso misterioso como Mao ou um megalómano como o seu velho amigo Fidel, mas um homem real. Poderia ter saído de uma novela romântica.

     E parece-se realmente com o Cristo, jazendo morto naquela fotografia célebre.

     Sim, é possível compreender o fascínio que inúmeras pessoas, particularmente os jovens, têm por este homem. Mas compreender um fenómeno é uma coisa, se ele dá uma verdadeira imagem da realidade é outra. Para isso, é preciso olhar para além da mística.

 

O jovem Che ou “Don’t cry for me, Argentina”

 

     Durante os anos de formação de Che Guevara, a Argentina esteve dominada pelo Movimento Peronista. O peronismo, em grande parte uma invenção da brilhante esposa de Peron, Eva, foi a coisa mais próxima do fascismo perfeito que já existiu.

     Esqueça-se toda a propaganda e todas as cretinices que se incrustaram em torno da palavra “fascista”. Esqueça-se o nazi-fascismo e o fascismo clerical de Franco e Salazar. Por fascismo entendo a verdadeira essência do que foi um movimento revolucionário — o fascismo de esquerda.

     O fascismo verdadeiro e puro, tal como perspectivado por Mussolini, surgiu da ala esquerda militante do socialismo italiano. Era uma tentativa de impor o programa social-democrata através da ditadura e da força armada. O movimento rejeitava o positivismo e o evolucionismo estéril do marxismo ortodoxo, substituindo-o por uma emotividade romântica, por um nacionalismo extremo, por um culto da vontade e do “homem de acção”. O objectivo era nacionalizar a indústria e subordinar todas as classes às necessidades do Estado. As classes trabalhadoras deveriam beneficiar dessa revolução — mas somente na medida em que ficassem submetidas ao Estado fascista. O problema de Mussolini foi que nunca teve o apoio da classe trabalhadora, tendo sido obrigado a virar-se para as classes médias tradicionais. Por isso, muito da sua revolução não passou do papel.

     Não foi essa a situação que os Peron enfrentaram. Mais de 15 anos antes de eles tomarem o poder, os generais esmagaram os poderosos sindicatos anarco-sindicalistas e apenas alguns pequenos vestígios restaram. Os trabalhadores eram pobres, desorganizados e sem voz. Eva Duarte-Peron foi capaz de construir um movimento de trabalhadores que preencheu um vazio organizacional (e quando necessário esmagando os seus opositores enfraquecidos). Assim, o peronismo (fascismo argentino) tinha uma base sólida entre os trabalhadores. Com os encorajamentos da sempre enérgica Evita, o movimento nacionalizou os bancos, as companhias de seguros, as minas e os caminhos de ferro. Por isso, a Argentina possuía provavelmente o mais vasto sector capitalista de Estado fora de um regime stalinista. Os salários foram aumentados por decreto e foram introduzidos uma série de benefícios sociais a favor de Los Descamisados (literalmente “os sem camisa”, as classes trabalhadoras partidárias dos Peron). Até a Igreja foi atacada. A cartada “anti-imperialista” foi jogada ao extremo, alternando entre um anti-americanismo violento e um sentimento anti-britânico. O estrangeiro convertia-se no bode expiatório de todos os problemas da Argentina.

     Che Guevara simpatizava com o peronismo e assimilara muitas das suas ideias. De muitas maneiras, deveria permanecer sob o charme da ideologia peronista toda a sua vida. Em 1955, depois de ter optado por Staline, podia igualmente afirmar que “temos de dar a Peron todo o apoio possível…” (p. 127) (1). Quando Peron caiu (*2), declarou: “Confesso com toda a sinceridade que a queda de Peron me tornou profundamente amargo… A Argentina era o paladino de todos aqueles que pensam que o inimigo está no Norte” (p. 182). Durante a revolução cubana, o Che chamou aos seus novos recrutas na guerrilha Los Descamisados (p. 231), o nome que Peron dava aos seus partidários.

     Essa afeição pelo peronismo nunca cessou. O Che disse a Angel Borlenghi (o antigo ministro do Interior de Peron) em 1961, que Peron era a encarnação mais avançada da reforma política e económica na América Latina (2). Em 1962, o Che declarou que os peronistas tinham de ser incluídos na frente revolucionária argentina. Fidel pediu a Peron que visitasse Cuba. John Cooke, o representante pessoal de Peron, visitou Cuba e elogiou a Revolução (p. 539).

 

As raízes fascistas da concepção do mundo do Che

 

     Pode observar-se a influência peronista (e fascista em geral) em muitos aspectos do pensamento do Che. No que se refere ao que era necessário para fazer uma revolução, o Che considerava que “o que era exigido para fazer progressos políticos… era uma direcção forte e determinada a utilizar a força” (p. 50). O Che nunca se preocupou com os modos ditatoriais e autocráticos de Fidel. Ele achava que a verdadeira revolução só podia ser levada a cabo por um “homem forte” (p. 319).

     Tinha igualmente a obsessão fascista pela vontade: “O poder da vontade triunfará de tudo… O destino pode ser cumprido pelo poder da vontade… Morrer, sim, mas crivado de balas… uma recordação mais duradoura que o meu nome é combater para morrer combatendo.” Assim escrevia Ernesto Guevara aos 18 anos em 1947 (p. 44). Isto não era somente um melodrama de adolescente. Com 25 anos de idade, quando estava na Guatemala, o Che teve uma “revelação” sobre a qual escreveu: “E vejo… como morro como um sacrifício à verdadeira revolução modeladora das vontades… agora o meu corpo agita-se, pronto para o combate, e preparo o meu ser como se ele fosse um lugar sagrado afim de que o rugido bestial do proletariado possa ressoar” (p. 124).

     A ideologia fascista afasta com desprezo a “moderação” e o compromisso racional, considerando-os como fraqueza e decadência. Para o Che, a moderação era qualquer coisa a ser evitada a todo o custo e era “uma das mais execráveis qualidades. Não só não sou moderado, como tentarei nunca o ser, e quando verificar que a chama sagrada em mim tenha sido reduzida a uma tímida luz votiva, o mínimo que poderei fazer é vomitar sobre a minha própria merda”, escreveu em 1956 (p. 199). Muitos anos depois, exprimiu a opinião de que “todos aqueles que têm medo ou encaram qualquer forma de traição são moderados” (p. 477). Tinha uma opinião muito fraca dos revolucionários populistas tais como Betancourt da Venezuela e Figueres da Costa Rica, considerando que a sua vontade de compromisso com os americanos resultava de fraqueza e falta de determinação.

     O fascismo também glorifica a guerra e idolatra o militarismo e os militares. O Che “identificava a guerra como a circunstância ideal para alcançar a consciência socialista” (p. 299). Encarava o exército revolucionário como a “principal arma política da revolução” e achava que “a liberdade de imprensa era perigosa” (p. 422).

     O nacionalismo extremo, fomentador de ódio e da transformação em bodes expiatórios de outras nações e povos, foi sempre um aspecto importante do fascismo. O Che era “obcecado” pela ideia de que os EUA eram os culpados de tudo. Essa procura de bodes expiatórios começou a adquirir contornos sérios aquando da sua primeira viagem pela Argentina em 1950, quando descobriu a pobreza rural (p. 52). Tinha uma “…hostilidade profundamente enraizada contra os EUA… As únicas coisas de que gostava desse país eram os seus poetas e romancistas” (p. 63). O Che declarou uma vez: “Morreria com um sorriso nos lábios combatendo essa gente [os Americanos]” (p. 345). Referia-se com frequência de forma xenófoba aos “louros do Norte” (mas estava sempre disposto a apoiar esses outros “louros do Norte” — os Russos). Para o Che, o aspecto positivo do colonialismo em África era “o ódio que o colonialismo deixou no espírito das pessoas” (p. 619).

     O niilismo e a ideia de que “o fim justifica os meios” são traços fascistas essenciais (igualmente partilhados pelo marxismo-leninismo). Todo o passado deve ser varrido numa grande conflagração e um “Homem Novo” superior ser criado — pela força, se necessário. O Homem Novo é necessário porque o Homem Antigo — a humanidade actual — é fraco e burguês e apenas útil como carne para canhão na luta pelo futuro glorioso. Sacrificar uma geração ou duas pela causa não tem nada de chocante na mentalidade fascista. Como ele declarou, “quase tudo quanto pensámos e sentimos no passado deveria ser arquivado, e deveria ser criado um novo tipo de ser humano” (p. 479).

     Em comparação com a sua prontidão para sacrificar inúmeras vidas pelo “futuro glorioso”, os espancamentos e encarceramentos administrados pelos Peron parecem moderados. Depois dos russos terem retirado os seus mísseis, pondo termo à Crise dos Mísseis Cubanos de 1962, o Che “encolerizou-se contra a traição soviética” e declarou ao jornalista do Daily Worker (Londres) (*3) que “se os mísseis tivessem estado sob controlo cubano, eles tê-los-iam lançado”. O jornalista “achava que ele estava descontrolado pela maneira como tudo se passara na questão dos mísseis” (p. 545). Em 1965, defendia uma guerra mundial revolucionária e apocalíptica, mesmo se ela desencadeasse a bomba atómica. “Milhares de pessoas morrerão por todo o lado… Mas isso não nos deveria afligir...” (sublinhado por mim). Dessa destruição em massa era suposto surgir a nova ordem socialista (p. 604).

     O plano do Che para a fatal campanha boliviana implicava que “a Bolívia [devia] ser sacrificada pela causa da criação das condições para revoluções nos países vizinhos”. A ideia era criar novas guerras do Vietname na América Latina e com isso imobilizar e enfraquecer os EUA. Isso para provocar a união da Rússia, da China e dos movimentos de guerrilha do Terceiro Mundo num bloco poderoso para então destruir os Estados Unidos (p. 703). Uma vez mais, mesmo que esse esquema pudesse provocar uma guerra atómica.

     A mensagem do Che na reunião da Tricontinental em Havana, em Abril de 1967, levou os seus impulsos fascistas, niilistas e românticos a um apogeu sangrento. Não desejava nada mais do que um “longo e cruel” confronto global. A qualidade importante requerida nessa guerra mundial era “um ódio implacável… elevando-nos acima e além dos limites naturais de que o homem é herdeiro, transformando-o numa eficaz, violenta, sedutora e fria máquina mortífera...” (sublinhado por mim). Essa guerra devia ser “total” e devia ser travada tanto dentro dos EUA como fora, travada até que a “fibra moral americana começasse a declinar”, o que devia ser sintomático da “decadência” dos EUA. “Como poderíamos olhar o futuro de tão luminoso e tão próximo, se dois três, muitos Vietname  florescessem… Toda a nossa acção é um grito de guerra contra o imperialismo e um clamor pela unidade dos povos contra o grande inimigo da humanidade: os EUA. Em qualquer lugar que a morte nos surpreenda, que seja benvinda.” (p. 719). É preciso referir que a glorificação da morte é um traço tipicamente fascista e o “Viva a Morte!” dos falangistas (*4) ecoa no estribilho castrista “Patria o Muerte!”, ou seja “Pátria ou Morte!”.

 

O Che stalinista

 

     Em 1955, o Che tinha-se tornado um stalinista convicto, escrevendo: “Jurei diante de uma imagem do velho e saudoso camarada Staline que não descansarei enquanto não vir esses polvos capitalistas aniquilados” (p. 126). Ele “tinha-se mostrado céptico [a propósito do marxismo] até à sua descoberta das obras de Staline” quando estava na Guatemala (p. 565). (O Che teve sempre uma certa simpatia pela URSS e censurava o anticomunismo como um exemplo de baixa cultura.)

     Não é muito difícil passar do fascismo ao stalinismo (ou o contrário, tanto faz). As similitudes entre as duas ideologias — a glorificação da violência, a ditadura, o estatismo, o nacionalismo, a criação de bodes expiatórios — tendem a sobrepor-se às suas diferenças. Onde há uma diferença é no domínio da filosofia. Ao contrário do fascismo, o stalinismo ainda se agarra à bagagem pseudo-científica do marxismo. A crença de que as “leis do desenvolvimento social” estão do seu lado dá aos stalinistas um sentimento de conforto psicológico. Cria também uma contradição intransponível — uma filosofia subjacente rigidamente determinista combinada com uma prática altamente voluntariosa. (Sendo o Partido o “sujeito da história” — ou seja, o grupo que faz a revolução e controla o futuro desenvolvimento do Estado socialista.)

     Para a teoria do “foco”  do Che (*5), que dispensa o partido e o movimento de massas em favor de um pequeno grupo de guerrilheiros, essa contradição é intensificada ao último grau. Veja-se a dificuldade com que ele tenta superar esse problema: na época da invasão da Baía dos Porcos (1962), o Che escrevia: “A classe camponesa da América, baseando-se ela própria na ideologia da classe operária, cujos grandes pensadores descobriram as leis sociais que nos governam.” Contudo, o que faltava era o denominado factor subjectivo — “a consciência da possibilidade da vitória” que devia ser galvanizada pela luta armada dos grupos de guerrilha (p. 505).

     Enquanto stalinista, o Che teve algumas obrigações extremamente importantes a cumprir no interesse do movimento comunista e da União Soviética. A primeira  delas foi orientar o Movimento do 26 de Julho na direcção do stalinismo. Muito poucos participantes do Movimento do 26 de Julho eram comunistas ou sequer simpatizantes comunistas. Outros grupos revolucionários como o Directório ou os Anarquistas eram anti-stalinistas de forma militante. (O Che e Raul Castro eram stalinistas, Fidel era muito amigo do PC mas discreto a esse propósito). O Che tornou-se o “participante-chave nas conversações delicadas com o Partido Socialista Popular” (o Partido Comunista Cubano) (p. 363). Ele “trabalhou secretamente para cimentar os laços com o PSP” (p. 389). A aliança entre o 26 de Julho e o PSP tinha de ser secreta para não cindir o movimento revolucionário nem provocar a hostilidade americana. Muitos dos patriotas cubanos detestavam o PC, que só muito tardiamente se tinha juntado à luta e que em tempos tinha sido aliado de Batista!

     Após a revolução, o Che tornou-se a ligação entre o KGB e o novo governo revolucionário, num momento em que as relações entre Cuba e a Rússia tinham de ser clandestinas para não irritar o cubano médio nem alertar o Departamento de Estado norte-americano (p. 440). Como declarou o antigo agente do KGB que estava associado com ele, “o Che foi praticamente o arquitecto das nossas relações com Cuba” (p. 492). Mas não foi essa a única relação que ele teve com os russos. O tratado dos mísseis nucleares com a Rússia, que quase desencadeou a Terceira Guerra Mundial, foi igualmente celebrado pelo Che (p. 530).

     Em 1963, o Che ficou desapontado quando se apercebeu de que o modelo russo, que na sua ingenuidade abraçara de forma tão entusiasta, não era muito bom (p. 565). Pouco depois, não tendo manifestamente aprendido com os seus erros com o stalinismo russo, apaixonou-se pelo stalinismo chinês, escrevendo: “o sacrifício é fundamental… os chineses compreendem isso muito bem, muito melhor do que os russos” (p. 605). Mesmo antes, o Che também tinha uma “admiração especial” pela China e pela Coreia do Norte (p. 495).

 

O Che executor

 

     Na Sierra Maestra, o Che nunca hesitou em pedir a execução de guerrilheiros ou de camponeses locais que não se enquadravam nas suas regras. “Informadores, insubordinados, simuladores e desertores” levavam com uma bala na cabeça. Fidel era muito mais tolerante para com a fraqueza humana e anulou muitas ordens de execução do Che. As execuções eram muito frequentes durante a campanha de guerrilha (p. 231). Era “notoriamente severo” nas suas punições. Uma vez ameaçou abater uma série de guerrilheiros que tinham iniciado uma greve da fome contra as más provisões. Só a intervenção de Fidel o travou (p. 346).

     Pouco depois da queda de Batista, o Che ajudou a criar o C-2, a nova polícia secreta. Foi igualmente encarregado de purgar o exército e a burocracia governamental dos “traidores, espiões e homens de mão de Batista”. Todavia, foram sobretudo indivíduos menores que foram presos, pois os oficiais e os altos burocratas fugiram com o ditador. O Che foi o “procurador supremo” que tomava a decisão final de executar ou não (p. 385). E ele executou. O Che era “impiedoso” (p. 390) e entre Janeiro e Abril de 1959 foram abatidas mais de 550 pessoas pelos pelotões de execução (p. 419). Em Janeiro de 1960, não foram só os supostos partidários de Batista a serem fuzilados. Alguns jovens católicos foram executados por distribuição de panfletos anticomunistas (p. 458).

     O Che está implicado na destruição do anarco-sindicalismo cubano (assim como do trotskismo). Nos anos de 1950, Cuba foi a cena de um dos últimos grandes movimentos sindicalistas da América Latina. (Ver Anexo.) Os libertários controlavam muitos sindicatos e eram uma importante força contra Batista. Os anarquistas tinham sobrevivido às ditaduras de Machado e Batista, mas não sobreviveram a dois anos de castrismo. Em 1962, o movimento estava reduzido a 20 ou 30 membros, tendo algumas centenas de outros fugido para o exílio, sido presos ou executados. Para alguém que ainda possa alimentar ilusões sobre o carácter pretensamente libertário do Che, a seguinte citação deveria pôr-lhe um termo: “O individualismo… deve desaparecer de Cuba… deverá assegurar-se a correcta utilização do conjunto dos indivíduos para o benefício absoluto da comunidade” (p. 478). Semelhante opinião sobre o indivíduo estava tão longe das ideias libertárias quanto se possa imaginar.

 

O Che burocrata

 

     No final de 1959, a autonomia universitária — que tinha conseguido sobreviver com Batista — foi abolida com a aprovação do Che. Foram introduzidos novos programas de Estado (p. 449) e as universidades tornaram-se meros instrumentos do regime.

     Em 1960, foi criado, sob a direcção do Che, o Instituto Nacional da Reforma Agrária (INRA). Apesar de na concepção inicial se destinar a gerir as “cooperativas” de Estado, esta organização acabou por assumir o controlo de toda a economia (p. 458). Ora, uma cooperativa de Estado é uma contradição nos termos, pois as cooperativas são por natureza associações voluntárias, detidas e geridas localmente. O que o INRA fez foi nacionalizar as cooperativas existentes (algumas das quais eram anarquistas) e instituir uma grande quantidade de novas falsas cooperativas — essencialmente herdades do Estado. Em 20 de Fevereiro de 1960, o Che anunciou uma “planificação de estilo soviético” para Cuba (p. 462), coisa que tinha sido seu desejo havia muito. (A nomeação do Che à cabeça da economia cubana foi um desastre completo e provavelmente contribuiu para o lançar na sua acção suicidária boliviana.)

     Estando à cabeça da economia cubana, o Che foi no fim de contas responsável pela abolição dos direitos dos trabalhadores e pela destruição do movimento sindical independente. Quanto aos primeiros, no final de 1960, os trabalhadores tinham perdido o direito de greve, a segurança do emprego, a baixa médica, a semana de 44 horas, as horas extraordinárias pagas a 150 por cento, as férias pagas, sendo obrigados a fazer “trabalho voluntário” (3). Quanto aos sindicatos, ao mesmo tempo que liquidava o anarco-sindicalismo, o regime tentou fazer eleger a lista do Partido Comunista para a direcção da Confederação do Trabalho Cubana (CTC), a qual foi rejeitada por 90% dos delegados. Os stalinistas foram impostos de cima pelo Estado. O dirigente da CTC, David Salvador, membro importante do Movimento do 26 de Julho, nada menos, foi condenado a 30 anos de prisão pela sua oposição à tomada de controlo stalinista do seu sindicato. Purgou a sua pena atrás das grades numa prisão juntamente com cerca de 700 outros presos políticos, muitos dos quais eram sem dúvida sindicalistas (4). A responsabilidade do Che nesta área não pôde ser mais completa, pois em Outubro de 1960 declarou que “o destino dos sindicatos é desaparecerem” e apoiou a Lei 647, pela qual: “O Ministério do Trabalho pode assumir o controlo de qualquer sindicato, demitir os dirigentes e nomear outros…” (5).

 

A tragédia de Che Guevara

 

     Despido da mitologia, o Che não é muito bonito de contemplar — a menos que se admirem pessoas cheias de ódio, de violência e adeptas do despotismo. Mas não se leve isso demasiado longe. O Che não era um sociopata de olhar de víbora como Staline ou um intelectual fanático de sangue frio como Pol Pot. Antes de se tornar o Savonarola guerrilheiro da Sierra Maestra, era conhecido por ser um brincalhão e um travesso. Um hippie antes do seu tempo, um apaixonado de poesia, de conversas até de madrugada, de viagens, de futebol, de boa comida, de motas e de mulheres. Poucos dos seus amigos podiam acreditar na transformação que sofrera o seu velho compincha El Chancho após a sua ida para Cuba. (El Chancho era a sua alcunha e significa “O Porco”. Era assim chamado devido ao seu gosto pelas roupas esfarrapadas e sujas e à sua aversão pelos banhos — uma das suas maneiras de se rebelar contra as suas origens de classe superior.) O Che era essencialmente um jovem normal mas rebelde, inteligente e muito culto.

     Algo lhe aconteceu. Sim, tinha absorvido muito das desagradáveis ideias de Peron, mas muita gente o fez. Essas pessoas continuaram as suas vidas e não foram destruídas por uma ideologia. A política também não era muito importante para o Che até ter ido para a Guatemala. Ali descobriu uma ideologia que “chocalhou” as suas crenças e preconceitos subjacentes, que parecia explicar o mundo e dar substância e sentido à sua vida. O Che era fundamentalmente um ser humano normal e equilibrado que se tornou escravo de uma religião secular cruel. O seu sistema de crença consumiu-o, levando-o a fazer coisas que normalmente não teria feito. Tornou-o duro e fanático. Como declarou seu pai, Guevara-Lynch: “Ernesto brutalizou a sua sensibilidade para se tornar um revolucionário.” A sua mãe caracterizou esse novo Ernesto como “intolerante e fanático”. Os seus pais não se opunham às políticas de esquerda, mas só ao que essas políticas estavam a fazer ao filho (p. 605).

     Numa interpretação de conjunto, o Che era essencialmente ingénuo. Considere-se a ingenuidade de se tornar um stalinista em 1955, não rompendo com o culto durante as revelações de Khrouchtchev em 1956 (quando milhares de intelectuais ocidentais se afastaram do PC) e depois, já no fim, de querer trocar o stalinismo russo pela variante chinesa. Não é que os horrores do stalinismo não fossem bem conhecidos — não precisávamos de Soljenitsyne para nos descrever o goulag —, qualquer anarquista, trotskista ou socialista anti-stalinista lhe poderia ter dito a verdade. E talvez alguém o tenha feito, mas ele deve ter-se recusado a ouvir.

     O seu culto pessoal da vontade era igualmente ingénuo, acabando por o conduzir à morte. Apesar de aderir a um sistema de crenças que tremia incessantemente sobre as “condições materiais”, ele ignorou a “realidade material” na sua última luta fatal. Como pôde ele não ter em conta o facto de os camponeses bolivianos terem recebido terras durante a revolução populista de 1952 e não estarem interessados noutra sublevação armada? Como pôde ele não saber isso? Veja-se a sua declaração na Tricontinental — como se atacar um país fosse quebrar a vontade do seu povo — como se pudesse amedrontar os americanos na derrota.

     Quem conheça a história sabe bem que isso não se passa assim — tentar aterrorizar uma nação só reforça a determinação do seu povo. E se os EUA eram “o maior inimigo da humanidade”, o que era então a Rússia (ou a China) com as suas dezenas de milhões de pessoas massacradas pela fantasia de ditadores megalómanos?

     Como pôde ele não saber essas coisas? Terá sido porque não as quis saber?

     Não se pode negar que o Che era fisicamente muito corajoso, repetidas vezes se colocou nos maiores perigos durante a luta de guerrilha. Era um combatente verdadeiramente corajoso. Apesar de duro nos seus métodos, não era hipócrita — os seus sacrifícios, os seus sofrimentos eram exemplos para os seus homens. Mas a coragem física não é assim tão rara, muitos soldados na frente a têm, alguns criminosos também. Muitas pessoas que pertencem aos piores tipos de cultos políticos ou religiosos agem com uma imensa bravura.

     Uma outra questão é a combinação da coragem física e moral. Esta última, ele não a tinha, tal como ninguém que ache que “o fim justifica os meios”. Para mostrar coragem moral, ele, ou qualquer outro na sua posição, teria tido que saber sacrificar a revolução a princípios humanitários superiores. Mais vale nenhuma revolução do que uma baseada no terror e no assassinato em massa. Mais vale arriscar a organização do que executar camponeses que querem voltar para casa (“desertores”). Mas para o Che, como para os stalinistas,  fascistas e todos os fanáticos em geral, esses princípios eram exemplos de fraqueza e de sentimentalismo liberal. No entanto, com toda a objectividade, a combinação da coragem física e moral é muito rara. Quantos de nós têm estas duas características? (6)

     O Che foi reflexo do seu meio ambiente e não o superou. Foi uma imagem reflexa do peronismo, do romantismo, do machismo e da xenofobia tão presentes na Argentina dos anos 1950. A sua simpatia pelo stalinismo foi algo partilhado por muitos intelectuais da época. Até o seu espírito boémio corresponde ao modo de comportamento da juventude culta das classes superiores. O verdadeiro Grande Homem ou Grande Mulher supera as influências da sua época e do seu meio ambiente, quebrando os hábitos ultrapassados pelo tempo e promovendo um conjunto de ideias novas. O Che, despojado da sua imensa coragem e zelo fanático, foi assim essencialmente um homem mediano. (7)

 

O Che morreu pelos nossos pecados

 

     O Che foi um homem comum, não um “homem completo”, como proclamou Sartre, esse mais incompleto dos homens (Sartre nunca encontrou um ditador ou um terrorista de esquerda de quem não gostasse). O Che é cada um de nós que sentiu um dia vontade de matar um opositor político. O Che é cada um de nós que odiou alguém com um ponto de vista diferente. O Che é cada um de nós que foi aspirado no turbilhão de qualquer culto ideológico-político. O Che é cada um de nós que fez a apologia de um acto terrorista. O Che é cada um de nós que acreditou um dia no “por todos os meios necessários”. O Che sou eu. O Che és tu. O Che apenas meteu em acção determinada os ódios e medos que sentimos em nós. Ele era um homem normal, não um perverso como Hitler ou Staline — déspotas que podem muito simplesmente ser descritos como monstros e como tal não têm relação comigo nem com o curso possível da minha acção. O Che, num certo sentido, “morreu pelos pecados” de pessoas normais apanhadas na ideologia, dominadas por fraquezas morais e problemas psicológicos que são incapazes de resolver de maneira construtiva.

     O Che não se parece lá muito com um santo, não é verdade? Mas há uma coisa a ter em conta — o pior pecador pode por vezes tornar-se um santo. Um grande exemplo disso foi São Paulo, que em certa altura foi um violento perseguidor de cristãos. Evidentemente, o Che foi assassinado antes de ter a possibilidade de ver os seus erros e, dada a sua grande teimosia, poderia nunca os ver, mas quem sabe? Contudo, o seu sofrimento, a sua autodestruição (e destruição de outros) e a sua derrota final servem como um exemplo para os jovens de todas as épocas. NÃO SIGAM O SEU CAMINHO! Se o sacrifício do Che dissuadir os jovens de cair nesse inferno criado ideologicamente, talvez mereça o manto da santidade. (8)

     Talvez então devêssemos acender uma vela por São Che. E pedir: “Por favor, não mais guerrilheiros heróicos!”

 

Larry Gambone

 Setembro de 1997

 

NOTAS:

 

     (1) Os números entre parêntesis referem-se às páginas de Che A Revolutionary Life, de John Lee Anderson, Grove Press NY, 1997. É a biografia definitiva de Guevara, que contém uma documentação até aqui inacessível. O trabalho de Anderson foi atacado por alguns críticos como sendo uma “hagiografia”. Ele tem simpatia pelo Che e por uma parte da ideologia que o motivou. Mas isso serve para tornar as citações ainda mais devastadoras para a imagem mítica.

     (2) The Cuban Revolution A Critical Perspective, Sam Dolgoff, Black Rose Books, Montréal, p. 276.

     (3) Ibid., p. 99.

     (4) Ibid., p. 100.

     (5) Ibid., p. 180.

     (6) Alguns exemplos seriam praticantes da não-violência como Gandhi ou Martin Luther King. Contam-se também entre eles lutadores intelectuais como George Orwell, Albert Camus e Simone Weil.

     (7) É claro que ninguém supera completamente as suas origens e a sua história. A lista de pessoas moralmente corajosas acima apontadas poderia igualmente servir como exemplos de pessoas que quebraram as regras dominantes.

     (8) O problema é que a esquerda ainda o apresenta como um exemplo a seguir.

 

Notas do tradutor

 

     (*1) Na América Latina, sobretudo na Bolívia, Ernesto Guevara é venerado como Santo Ernesto de la Higuera, sendo la Higuera o nome do povoado boliviano onde foi assassinado.

     (*2) Peron foi derrubado por um golpe de Estado militar de inspiração nacional-católica em 1955.

     (*3) Daily Worker, jornal do Partido Comunista britânico.

     (*4) Falangistas, os fascistas espanhóis dos anos 1930.

     (*5) A teoria do foco guerrilheiro foi exposta por Che Guevara de forma sistemática na obra que ditou a Régis Debray Revolução na Revolução. Extrapolada a partir da experiência da guerrilha cubana, que foi considerada como exportável quando era muito específica, essa teoria considerava que a acção voluntarista de um grupo móvel de guerrilheiros podia arrastar progressivamente a adesão das massas e constituir o embrião do futuro partido revolucionário combatente. A aplicação desta teoria conduziu por todo o lado a uma derrota sangrenta.

 

 

ANEXO

 

Os anarco-sindicalistas cubanos nos anos 1950.

 

A mais importante organização anarquista cubana era a Associação Libertária de Cuba (ALC). Apresentamos a seguir uma lista parcial das suas secções:

 

Pinar del Rio

Membros da ALC participaram nas direcções dos sindicatos dos trabalhadores do tabaco, dos electricistas, da construção, dos carpinteiros, dos empregados bancários e dos trabalhadores da saúde. Também produziram programas na rádio local.

 

San Juan y Martinez

Dirigiram o sindicato dos trabalhadores rurais.

 

San Crisobal

Dirigiram a Associação Agrária e os sindicatos dos trabalhadores açucareiros e dos trabalhadores tabaqueiros.

 

Artemisia

Dirigiram os trabalhadores tabaqueiros e produziram programas radiofónicos.

 

Havana

Participação nas direcções dos sindicatos dos electricistas, dos trabalhadores dos bens alimentares, dos transportes, do calçado, dos pescadores, dos marceneiros, da saúde, metalurgia e construção. Alguma influência nas associações de estudantes e profissionais.

Publicação de El Libertario (nessa época jornal diário) e do jornal mensal Solidaridad Gastronomica (do sindicato dos trabalhadores dos bens alimentares) e realização de encontros públicos semanais e de programas radiofónicos.

 

Arroyo Narajo

Direcção da Associação de Pais e de Professores, da Associação Cultural local e da Cooperativa de Consumidores.

 

Itato

Direcção do sindicato dos trabalhadores das salinas.

 

Ciego de Avila

Produção de programas radiofónicos e influência na associação camponesa, e nos sindicatos dos trabalhadores açucareiros e da saúde.

 

Nuevitas

Direcção do sindicato dos trabalhadores rurais, da cooperativa agrícola e de outros sindicatos.

 

Santiago de Cuba

Forte influência no sindicato dos trabalhadores dos bens alimentares.

 

Guantanamo

Organização e direcção da Cooperativa de Produtores de Café.

 

A ALC tinha ainda alguma influência em pelo menos um sindicato profissional ou associação popular de 23 outras localidades.

 

(Retomado de The Cuban Revolution A Critical Perspective, por Sam Dolgoff, Black Rose Books, Montreal, páginas 56-59.)

 

 

Outras Leituras

 

  • Cuban Anarchism, por Frank Fernandez. libcom.org
  • The Cuban Revolution: A Critical Perspective, por Sam Dolgoff www.iww.org
  • Cuba, the Anarchists and Liberty, folheto por Frank Fernandez libcom.org
  • El Libertario, jornal anarquista venezuelano abrangendo movimentos políticos e sociais latino-americanos. nodo50.org
  • Anarkismo.net , um sítio web internacional multilingue anarquista de notícias e opinião
  • A Federação Anarco-Comunista do Nordeste, organização bilingue de revolucionários que se identificam com a tradição comunista dentro do anarquismo. nefac.net
  • Industrial Workers of the World, sindicato operário revolucionário international: iww.org

 

(Tradução de asb e hms para o Portal Anarquista.)

 

https://theanarchistlibrary.org/library/larry-gambone-saint-che-the-truth-behind-the-legend-of-the-heroic-guerilla-ernesto-che-guevara

 

theanarchistlibrary.org

 

Sobre o Autor:

 

Larry Gambone

Anarquista canadiano. Partidário do anarco-sindicalismo, embora valorize também outras tradições anarquistas como o anarquismo individualista e oanarquismo mutualista, é investigador da história das ideias políticas, sendo a sua especialidade os temas relacionados com o liberalismo libertário, o anarquismo e o populismo. É membro do sindicato revolucionário IWW. Escreve desde a década de 1960 e actualmente é editor das publicações The Red Lion Press, é o impulsionador de uma iniciativa pela mutualização dos serviços sociais e mantém um blog.

 

 

Ver também: https://es.wikipedia.org/wiki/Larry_Gambone

 

_______________

 

 

Nota do tradutor:

 

     Fiz a presente tradução em meados de 2016, sendo revista pela minha companheira Helena Martinho dos Santos alguns meses antes de falecer, em 11 de Novembro de 2017. Fomos sempre grandes admiradores do Che e, como tal, considerámos que este texto é muito importante. Nada que não soubéssemos já, mas o enfoque do autor é fundamental. Estou por isso convicto de que também será útil aos leitores. (Ângelo Santana Barreto)

 

Relevante para o debate é este video sobre a força do mito:

https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=Hu-Nx6gjDcs

assim como algumas citações do grande demolidor de mitos que foi Mikhail Bakunine:

 

     “Pegue no mais ardente dos revolucionários e dê-lhe poder absoluto, ao fim de um ano será pior do que o próprio czar.»

 

     «Quem quer, não a liberdade, mas o Estado, não deve brincar à Revolução.»

 

     «Religião é demência coletiva.»

 

     «A emancipação económica deve ser a mãe de todas as outras emancipações.»

 

     «A liberdade alheia é a minha mas sem limites.»

 

     «Não há nada tão estúpido como a inteligência orgulhosa de si mesma.»

 

     «Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada. Essa minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e pôr-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana.»

 

     «Sou um amante fanático da liberdade, considerando-a como o único espaço onde podem crescer e desenvolver-se a inteligência, a dignidade e a felicidade dos homens; não esta liberdade formal, outorgada e regulamentada pelo Estado, mentira eterna que, em realidade, representa apenas o privilégio de alguns, apoiada na escravidão de todos; (...) só aceito uma única liberdade que possa ser realmente digna desse nome, a liberdade que consiste no pleno desenvolvimento de todas as potencialidades materiais, intelectuais e morais que se encontrem em estado latente em cada um.»

 

     «As pessoas vão à igreja pelos mesmos motivos que vão à taberna: para se estupefazerem, para se esquecerem de sua miséria, para se imaginarem, de algum modo, livres e felizes.»

 

     «É melhor a ausência de luz do que uma luz trémula e incerta, servindo apenas para extraviar aqueles que a seguem.»

 

     «A Liberdade do outro estende a minha ao infinito.»

 

     «É preciso que compreenda que não existe liberdade sem igualdade e que a realização da maior liberdade na mais perfeita igualdade de direito e de fato, política, económica e social ao mesmo tempo, é a justiça.»

 

     «Estamos convencidos de que o pior mal, tanto para a humanidade quanto para a verdade e o progresso, é a Igreja. Poderia ser de outra forma? Pois não cabe à Igreja a tarefa de perverter as gerações mais novas e especialmente as mulheres? Não é ela que, através de seus dogmas, suas mentiras, sua estupidez e sua ignomínia tenta destruir o pensamento lógico e a ciência? Não é ela que ameaça a dignidade do homem, pervertendo suas ideias sobre o que é bom e o que é justo? Não é ela que transforma os vivos em cadáveres, despreza a liberdade e prega a eterna escravidão das massas em benefício dos tiranos e dos exploradores? Não é essa mesma Igreja implacável que procura perpetuar o reino das sombras, da ignorância, da pobreza e do crime? Se não quisermos que o progresso seja, em nosso século, um sonho mentiroso, devemos acabar com a Igreja.»

 

     «Eu reverto a frase de Voltaire, e digo isto, se Deus realmente existisse, seria necessário aboli-lo.»

 

     «A existência de Deus implica a abdicação da razão e da justiça humanas, ela é a negação da liberdade humana e resulta necessariamente numa escravidão não somente teórica, mas prática.»

Partidos políticos e anarquismo: o que separa os libertários das tendências autoritárias

Abril 17, 2019

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aqui

 

A questão do partido, da necessidade ou não de um partido político que aglutine a classe trabalhadora e crie as condições para a revolução social, sempre foi um tema central para os leninistas, sobretudo depois do "Que Fazer?" de Lenin, onde este postulou os principios do partido revolucionário, constituído essencialmente por revolucionários profissionais e assumindo-se como a vanguarda revolucionária.

Milhares de jovens em todo o mundo, e também em Portugal, partilharam desta ilusão, ou seja, da ideia de que era preciso uma "vanguarda" para organizar e dirigir os trabalhadores na luta emancipadora, logo que a construção de um "partido revolucionário" era essencial.

O destino trágico dos países do socialismo real, em que uma minoria tomou o poder em nome do povo, praticando toda a espécie de abusos de poder e instalando o capitalismo de estado sobre a generalidade dos trabalhadores, leva a equacionar hoje de novo as propostas anarquistas de organização, ainda que o movimento libertário não tenha ficado imune a este debate entre partido político e auto-organização dos trabalhadores.

Este livro é um contributo fundamental para este debate e para uma percepção mais nítida de qual o posicionamento da maior parte dos anarquistas sobre a questão da organização.

ANARQUISMO E MARXISMO por René Berthier

Março 27, 2019

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René Berthier

 

O texto que se segue foi redigido a pedido dos companheiros do Grupo Pierre Besnard no final dos anos 90 no âmbito de uma sessão de formação interna.

 

     O colapso do bloco soviético parece suscitar nalguns camaradas receios quanto a uma eventual recuperação de ideias próprias ao movimento anarquista pelos sobreviventes do marxismo, desejosos de restaurarem uma virgindade.

     É um receio justificado, e essa recuperação não é um fenómeno novo, uma vez que começou ainda em vida do próprio Marx, tendo já sido denunciada por Bakunine.

     Penso que a primeira medida a adoptar para contrariar essas recuperações seria exprimir as nossas próprias posições de forma clara e pública. Ora, estamos muito longe disso. Imaginar-se-á por exemplo que o marxismo teria podido existir se as obras de Marx, Engels e Lenine nunca tivessem sido publicadas e comentadas em edições de preço acessível a toda a gente? Ora, o que se passa com as ideias anarquistas? Os livros de Bakunine, de Proudhon e de Kropotkine são pràticamente impossíveis de encontrar e, que eu conheça, não existe nenhum comentário desses autores digno desse nome estritamente anarquista. Somos portanto os primeiros responsáveis pela recuperação das nossas ideias pelos nossos adversários políticos. 

 

I

O que é irrecuperável no marxismo

 

     A primeira questão que se pode colocar é: o que é que é irremediàvelmente irrecuperável no marxismo. É uma questão à qual não é possível responder se não se especificar de que marxismo estamos a falar.

     Diria que se pode responder a partir de três níveis:

 

  1. O marxismo enquanto corpus teórico

     Trata-se de só tomar em consideração os textos do próprio Marx e, no máximo, os de Engels, na sua totalidade, incluindo a Correspondência, para tentar compreender o que ele quis ou o que eles quiseram realmente dizer. É a abordagem mais científica, e que permite fazer, intelectualmente falando, a ideia mais justa. Mas é evidente que o marxismo não se limita a isso; é um movimento real e múltiplo, que tem a sua interpretação própria dos seus pais fundadores, e não sòmente um corpo de doutrina.

 

  1. O marxismo na sua aplicação em vida do próprio Marx

     É conhecida a famosa frase de Marx: «A única coisa que sei é que não sou marxista.» O que sugere que, no seu tempo, o movimento político saído das suas ideias tinha tomado uma orientação que o fundador não aprovava: trata-se evidentemente da social-democracia alemã. Contudo, é difícil não considerar esse movimento como marxista, atendendo à qualidade dos seus dirigentes: Kautsky, Bebel, Liebknecht, etc.

 

  1. O marxismo nas suas interpretações póstumas

     Neste terceiro ponto incluem-se a social-democracia, o leninismo no seu período contemporâneo da revolução russa assim como os grupos (trotskistas e maoistas) que se reclamam dessa tradição, e o comunismo «ortodoxo» actual versão Partido comunista.

     O que define essencialmente o marxismo «real» antes de Lenine é o parlamentarismo. A crítica bakuniniana da política marxista baseia-se na estratégia parlamentar desta última. Mais é evidente que, na sua época, Bakunine não podia conhecer tudo o que Marx pensava dessa política; a sua crítica baseava-se na actividade prática de Marx. Deve compreender-se todavia que o ponto de vista de Marx e de Engels não se reduzia a um parlamentarismo de lamentações, diria eu. Mostravam-se bastante irritados com o cretinismo parlamentar de certos dirigentes socialistas alemães. Para eles, a acção parlamentar era apenas uma etapa que permitiria à classe operária tomar o poder, e então esta última teria a possibilidade de efectuar «investidas despóticas», segundo a fórmula do Manifesto, contra a propriedade burguesa. Portanto, não se trata de um simples reformismo balofo, segundo o qual a sociedade capitalista se poderia transformar em sociedade socialista através de reformas graduais.

     De facto, se observarmos mais de perto, a sua posição tal como vem exposta no Manifesto estava bastante próxima da do PCF dos nossos dias. O partido comunista é, nos factos, perfeitamente «ortodoxo». Aqueles que conhecem o PC de perto, e em particular os militantes «prevenidos», sabem que estes se estão perfeitamente nas tintas para o parlamentarismo e que não têm nenhuma ilusão sobre a acção parlamentar.

     No congresso de Haia, no qual os bakuninistas foram expulsos, Marx declarou que é preciso distinguir as instituições, os costumes, as tradições dos diferentes países e que é possível que nalguns deles, na Inglaterra, na América e talvez na Holanda, os trabalhadores «possam alcançar os seus objectivos por meios pacíficos», mas, acrescenta, «na maior parte dos países do continente, é a força que deve constituir o ariete das nossas revoluções». Portanto, como se vê, a acção parlamentar é apenas encarada como uma acção entre outras. É verdade que essa relativização pode ter sido motivada pelas violentas críticas dos bakuninistas contra as ilusões parlamentares. De qualquer modo, a acção parlamentar é considerada como possível, o que os anarquistas contestavam completamente.

     Quase vinte anos mais tarde, Engels deu mais um passo. Em 1891, num momento em que estão realizadas as duas principais reivindicações dos revolucionários de 1848, a unidade nacional e o regime representativo, Engels constata que «o governo possui todo o poder executivo» e as «câmaras nem sequer têm o poder de recusar os impostos». «O temor de uma renovação da lei contra os socialistas paralisa a acção da social-democracia», diz ainda, confirmando a opinião de Bakunine segundo a qual as formas democráticas dão muito poucas garantias para o povo. O «despotismo governamental» encontra assim uma forma nova e eficaz na pseudo-vontade do povo. Engels contrapõe à Alemanha «os países onde a representação popular concentra em si todo o poder, onde segundo a constituição se pode fazer o que se quer, desde que se tenha o apoio da maioria da nação (1). » Portanto, bastará que a maioria da população esteja de acordo, e que as instituições o permitam, para que o socialismo seja realizável. Engels não se coloca a questão de saber como essas premissas podem ser reunidas.

     Finalmente, em 1895 Engels leva a sua lógica até ao fim: «A ironia da história põe tudo de patas para o ar. Nós, os “revolucionários”, os “arruaceiros”, prosperamos muito melhor através dos meios legais do que pelos meios ilegais e pela arruaça.» (Introdução às Lutas de Classes em França.)

     Constatam-se assim dois pontos essenciais: nem Marx nem Engels limitam a acção do movimento operário a uma acção pacífica e legal, mas estão convencidos de que, onde as «instituições», os «costumes» e as «tradições» o permitem, os operários poderão pelas vias legais «conquistar a supremacia política para estabelecer a nova organização do trabalho» (Marx). Se Bakunine não tem razão em reduzir a acção preconizada por Marx e Engels à acção legal (2), continua pertinente a sua crítica das ilusões que eles exprimem sobre a possibilidade de «a velha sociedade poder evoluir pacìficamente para a nova» (Engels) num regime representativo autêntico.

     Não podemos negar as críticas que Marx fez no seu tempo contra a social-democracia alemã; no entanto, esta era incontestavelmente sua herdeira, apesar das influências lassallianas. Entre o parlamentarismo crítico e o parlamentarismo puro e simples não há realmente fronteira: tanto um como o outro apostam na ilusão de que as eleições podem servir para qualquer coisa, e é difícil imaginar um movimento em que os chefes e os militantes mais precavidos saberiam do que se tratava e a massa dos aderentes e os eleitores seriam mistificados.

     De facto, para saber o que é irremediàvelmente irrecuperável no marxismo na sua forma contemporânea de Marx, basta considerar os pontos que Bakunine se empenhou particularmente em criticar: a estratégia eleitoral e as formas de organização, encontrando-se de resto as duas perfeitamente ligadas.

     Bakunine, sublinhava vários pontos:

 

     — «Toda a mentira do sistema representativo assenta nesta ficção, que um poder e uma câmara legislativa saídos da eleição popular devem absolutamente ou mesmo podem representar a vontade real do povo.»

     — Se a burguesia possui o tempo e a instrução necessárias ao exercício do governo, o mesmo não acontece com o povo. Por isso, mesmo que estejam preenchidas as condições institucionais da igualdade política, esta continua sendo uma ficção.

     — Além de que (e aqui toca-se na «tecnologia» parlamentar) as leis têm a maior parte das vezes um alcance muito especial, escapam à atenção do povo e à sua compreensão: «Tomada em separado, cada uma dessas leis parece demasiado insignificante para interessar muito o povo, mas no seu conjunto formam uma rede que o agrilhoa.»

     — O papel da ideologia burguesa na classe operária, a influência dos «socialistas burgueses», a existência de camadas com interesses divergents na classe operária: tudo isso poderia impedir o proletariado, mesmo se fosse maioritário, de chegar a posições homogéneas.

     — Finalmente, o facto de o proletariado (e com ele o pequeno campesinato) ser ou não ser maioritário tem muito pouca importância; o que conta é que se trata da classe produtiva. Esta ideia de função social da classe produtiva é essencial, e é parfeitamente resumida num texto datado de 1869, «A Instrução integral»: «Acontece muito frequentemente um operário inteligente ser forçado a calar-se diante de um sábio idiota que o bate, não pela inteligência que não possui, mas pela instrução, de que o operário foi privado, e que ele pôde receber porque, enquanto a sua idiotice se desenvolvia cientìficamente nas escolas, o trabalho do operário o vestia, o alojava, o alimentava e fornecia-lhe todas as coisas, professores e livros necessários à sua instrução.»

     Nessas condições, a questão da maioria numérica perde importância. Na Idade Média, as forças produtivas estavam pouco desenvolvidas e a produtividade do trabalho era muito fraca: para manter um pequeno número de privilegiados era necessária uma grande massa de trabalhadores produtivos. Pode-se muito bem conceber um sistema desenvolvido em que as camadas não produtivas (não forçosamente exploradoras, esclareça-se, mas que amiúde desenvolvem uma ideologia de exploradores) e as camadas parasitárias são maioritárias, simplesmente porque a produtividade do trabalho é tal que um número relativamente pequeno de produtores basta para produzir a mais-valia social necessária. Basta olhar em volta e imaginar todas as profissões que poderiam entrar em greve geral ilimitada sem que a nossa existência quotidiana fosse fundamentalmente alterada: militares, funcionários a contrato, porteiros, notários, etc. Em contrapartida, sabe-se o que resulta de uma greve do pessoal da recolha do lixo ao fim de três dias...

     No que se refere ao leninismo, serei extremamente breve: não há nada de recuperável. Poderia pegar ponto por ponto em tudo o que define o leninismo e refutá-lo. Parece-me mais simples dizer que o leninismo não tem nada de recuperável porque ele se aplica a um contexto e a uma época que desapareceram. O leninismo é a ideologia revolucionária da pequena-burguesia intelectual sem perspectiva de futuro num país subdesenvolvido dominado pelo imperialismo, como era precisamente o caso da Rússia em 1917. Não é pois nada por acaso se movimentos de tipo leninista puderam florescer nos países do terceiro mundo sob a forma de movimentos de libertação nacional.

     Tal como ocorreu com o bolchevismo, o marxismo não passava para eles de uma cobertura, de uma máscara para as reivindicações nacionais. O leninismo corresponde a concepções arcaicas, pré-capitalistas de organização e de estratégia política.

 

II

Há no marxismo elementos que uma «readaptação» poderia conservar?

 

     Para começar, a questão está mal colocada. Eu diria antes: há coisas verdadeiras no discurso marxista? A óptica é completamente diferente.

     O marxismo é um corpo de doutrina que os epígonos, e em particular Lenine, quiseram apresentar como um «bloco de aço» coerente onde tudo era bom e nada a rejeitar. Ora, quando nos damos ao trabalho de considerar os textos de Marx no seu conjunto, vê-se um homem que procura, que tateia, que volta atrás, que ao longo da sua vida analisa os fenómenos sob ângulos diferentes, etc.

     — Ora, do marxismo retém-se apenas o determinismo histórico, mas Marx também diz que sem o acaso, a história humana seria muito triste.

     — Do marxismo retém-se a explicação exclusiva dos fenómenos históricos pelas determinações económicas, mas Engels reconhece que eles talvez tenham errado ao insistir demasiado nesse aspecto: «Foi Marx e em parte eu próprio que devemos ser considerados responsáveis pelo facto de que, por vezes, os jovens dão mais peso do que se deveria ao lado económico. Face aos nossos adversários, precisávamos sublinhar o princípio essencial por eles negado, e então nem sempre tínhamos tempo, lugar ou ocasião para reservar o devido espaço aos outros factores que participam na acção recíproca.» (Carta a Joseph Bloch, 21 de Setembro de 1890.)

     — Do marxismo retém-se uma dialéctica do desenvolvimento do capitalismo em fases históricas sucessivas, mas Marx escreve que essa «"fatalidade histórica" desse movimento é (...) expressamente limitada aos países da Europa ocidental» (Pléiade, II, 1558)...

     O problema é que essas reservas, que foram emitidas no final das suas vidas por Marx e Engels na sua correspondência, são capitais, mas foram expressas em textos confidenciais — correio — ou marginais. Como não foram expressas pùblicamente, em voz alta e clara, nem desenvolvidas, os movimentos comunistas foram colocados na senda de um marxismo mecanicista, simplificador, vulgar. Ora são precisamente esses os três pontos essenciais da refutação teórica feita por Bakunine contra Marx, a saber:

  1. A existência de um certo indeterminismo histórico;
  2. A recusa de explicar tudo pelas determinações económicas, mesmo se se reconhece que elas são capitais;
  3. A relativização da teoria das fases sucessivas do desenvolvimento histórico, saída conjuntamente de Saint-Simon e de Hegel.

     Como tal, diria paradoxalmente que o que é recuperável no marxismo é a crítica que dele é feita por Bakunine. Quero com isso dizer que as objecções de Bakunine não negam o marxismo como teoria explicativa do social, como método de análise histórica e económica, mas apenas relativizam os aspectos sob os quais o marxismo pôde parecer demasiado absoluto, totalizante (mesmo totalitário).

     A relativização do marxismo feita por Bakunine é algo de insuportável para muitos comunistas, precisamente porque ela re-situa o marxismo na corrente de idéias da época, como uma explicação do social entre outras. Ela retira-lhe o carácter quase religioso que tinha no espírito de muitos comunistas para lhe devolver o seu estatuto de hipótese científica, ou seja, refutável, modificável e que pode ser completada. O marxismo é reconduzido ao que nunca deveria ter deixado de ser, não mais a ciência absoluta do social e da revolução, mas uma teoria, uma «grelha de leitura» entre outras, nem mais nem menos válida do que, por exemplo, a sociologia de Max Weber ou a psicanálise de Eric Fromm.

     Outro paradoxo: penso que no marxismo é recuperável o que não é especìficamente marxista. Uma teoria do social parte necessàriamente da observação, e elabora, desenvolve conceitos que permitem explicá-lo, e finalmente propõe conclusões.

  1. Ora, a observação do social, dos mecanismos económicos do capitalismo feita por Marx, é globalmente a mesma que foi feita por Proudhon, com a diferença de que, tendo vivido mais tempo que Proudhon, Marx pôde desenvolver as suas ideias mais a fundo e — o que é um ponto de vista pessoal — com muito mais clareza.

     Bakunine, por exemplo, em nenhum momento nega a validade da descrição dos mecanismos do capitalismo feita pelo Capital, apenas critica as partes obscuras que tornam o livro inacessível aos operários. De resto, será o anarquista Cafiero quem fará um Resumo do Capital, precisamente para o tornar acessível, e será James Guillaume quem fará uma Introdução ao mesmo. Se a isso se acrescentar que o próprio Bakunine tinha começado a traduzir o livro em russo, pode-se dizer que temos aí algumas acreditações que o legitimam...

  1. Quanto aos conceitos, o marxismo não se constituiu por um toque de varinha mágica, mas erigiu-se a partir de uma base já existente. A maior parte dos conceitos que se encontram desenvolvidos no Capital já existiam quando Marx começou a escrever o seu livro. Leroux, Considérant, Proudhon e outros, forneceram uma parte da sua matéria. Todas as categorias económicas que se encontram no Sistema das Contradições de Proudhon voltam a encontrar-se quinze anos mais tarde no Capital. Marx, que viveu mais trinta anos do que Proudhon, acrescentou-lhes algumas outras, mas não se pode criticar Proudhon por não as ter desenvolvido, visto que elas também não existiam nos textos de Marx contemporêneos do Sistema das Contradições.

     Ao contrário de tudo quanto os marxistas possam ter posteriormente escrito, até mesmo o método empregado no Capital é amplamente tributário de Proudhon (3).

     Em conclusão, pode-se dizer que o que é recuperável no marxismo não o é por ser «marxista», mas por ser verdade. O marxismo como teoria explicativa do social fez a síntese de um certo número de dados, de conceitos, que na época andavam «no ar», e que Marx desenvolveu e explicitou, mas propondo conclusões políticas que nós globalmente não aprovamos.

     Acrescente-se que muitos dos elementos constitutivos do marxismo (os quais, se olharmos com mais atenção, se encontram nos autores contemporâneos ou anteriores) caíram, poder-se-ia dizer, no domínio público. E é por isso que a própria ideia de que possa haver qualquer coisa de «recuperável» no marxismo nem me parece pertinente.

 

III

Podem os marxistas recuperar alguma coisa do anarquismo?

 

     A questão que agora se nos coloca é: há no anarquismo alguma coisa que os marxistas possam recuperar? Há várias possibilidades: uma hipótese minimalista e uma hipótese maximalista, com todos os degraus intermédios.

 

     A posição minimalista consistiria, para os marxistas:

  1. Reconhecerem o bem-fundado da análise do capitalismo feita por Proudhon, ao risco de lhe reconhecerem o estatuto de precursor. No Sistema das Contradições Económicas, Proudhon fala (em abundância) do valor, da concentração do capital, da baixa da taxa de lucro, do maquinismo, etc., tudo coisas analisadas por Marx. Em seguida, poder-se-á sempre abordar as divergências de análise.
  2. Reconhecerem o bem-fundado das reservas feitas por Bakunine relativamente ao marxismo.

     Se o fizessem, só teríamos de nos congratular com o facto, mas isso não mudaria grande coisa na prática. Não penso que Charles Fiterman pediria por isso a sua adesão à Federação Anarquista e, por outro lado, penso que o comportamento político do PC não seria por isso grandemente afectado.

 

     A posição maximalista poderia ser qualquer coisa de semelhante à de Maximilien Rubel. Há quase dez anos escrevi na revista IRL * uma polémica contra as suas posições, segundo as quais Marx seria um teórico do anarquismo. Na realidade, não se pode de modo nenhum afirmar que a sua abordagem seja recuperadora, pois ele não recupera nada de quanto possam ter dito os teóricos anarquistas (4). Pelo contrário, ele não lhes reconhece nada de válido, e é Marx que é o único, o autêntico teórico do anarquismo. Marx tinha o projecto de um livro sobre o Estado, que nunca teve tempo de escrever, mas que teria sido, não haja dúvidas, o livro fundador do verdadeiro anarquismo. Segundo Rubel, esse livro que não passou da fase de projecto, «só poderia conter a teoria da sociedade libertada do Estado, a sociedade anarquista» (Marx Crítico do Marxismo, Payot, p. 45.)

     Cito o caso de Rubel apenas como um caso extremo, para mostrar que a possibilidade de uma recuperação é bem real. Contudo, não se contesta que as intenções de Rubel, sem ligação a qualquer organização, investigador isolado e a contra-corrente, sejam perfeitamente sinceras. O que não será provàvelmente o caso de outras tentativas. «A crítica do Estado de que ele [Marx] se tinha reservado a exclusividade nem mesmo teve um início de execução, salvo se retivermos os trabalhos dispersos, sobretudo históricos, em que Marx lançou os fundamentos de uma teoria do anarquismo.» (Op cit., p. 378).

     Assim, apesar de uma estratégia política, de uma praxis de que o próprio Maximilien Rubel diz ter sido contrária aos princípios enunciados, Marx, se tivesse tido tempo de o fazer, teria escrito uma teoria anarquista do Estado e da sua abolição. Os herdeiros de Marx que, até ao presente, construíram um capitalismo de Estado pouco conforme com as profissões de fé anarquistas — é Rubel que fala —, alimentaram-se dessa ambiguidade, causada precisamente pela ausência do livro sobre o Estado. Por outras palavras, parece pensar M. Rubel, se Marx tivesse tido tempo de escrever esse livro, a sua obra não teria apresentado essa ambiguidade (que Rubel sublinha por diversas vezes) e a sua qualidade de anarquista teria irrompido à luz do dia. A chave do problema do destino do marxismo e da sua adulteração reside por conseguinte nesse livro não escrito, cuja ausência fez deslizar o marxismo real para o horror concentracionário (5).

     Estas breves observações levam-me a pensar que, se alguns movimentos marxistas tentassem restaurar uma virgindade teórica, fá-lo-iam a partir de uma redefinição do Estado e do seu papel. Considero que — independentemente dos exageros teóricos de Rubel — seria daí que viria o perigo. É por isso que me parece que também o movimento libertário se deveria ocupar dessa questão, a fim de evitar os simplismos a que habitualmente temos direito.

     Se, quando se fala de marxismo, é necessário especificar de que marxismo se trata, o mesmo ocorre com as concepções marxistas do Estado. Disse no iníco que a recuperação de temas anarquistas foi denunciada pelo próprio Bakunine:  trata-se do livro que Marx escreveu logo a seguir à Comuna, a Guerra Civil em França. É uma obra em que Marx descreve a Comuna apropriando-se do ponto de vista federalista, ele que odiava o federalismo. O efeito da Comuna, diz Bakunine, «foi tão formidável por todo o lado, que os próprios marxianos, cujas ideias tinham sido completamente derrubadas por essa insurreição, viram-se obrigados a tirar diante dela o seu chapéu. E até fizeram muito mais: ao contrário da mais simples lógica e dos seus sentimentos verdadeiros, proclamaram que o programa e os objectivos da Comuna eram os seus. Foi uma mascarada realmente cómica, mas forçada. Tiveram de o fazer sob pena de se verem ultrapassados e abandonados por toda a gente, de tal modo fora poderosa a paixão provocada por todo o lado por essa revolução (6)

     No caso da Guerra Civil em França, há uma forma simples para saber o que Marx realmente pensava. É que, de facto, Marx escreveu esse livro porque julgava poder recuperar os exilados parisienses em Londres e, ao ver que isso não funcionava, estava furioso com a sua ingratidão! Basta consultar uma carta que ele escreveu ao seu amigo Sorge, em que exprime o seu furor por constatar que os comunardos refugiados em Londres não se lhe juntaram: «E aqui está a minha recompensa por ter perdido quase cinco meses a trabalhar pelos refugiados, e por ter salvo a sua honra com a publicação da Guerra Civil em França Resulta daqui que qualquer tentativa de «readaptar» o marxismo a partir do que Marx diz nesse livro não pode de modo nenhum ser levado a sério: ele não pensava uma palavra do que escreveu!

     Encontramos o mesmo processo durante a revolução russa, com  O Estado e a Revolução de Lenine, que se diz conter o summum da teoria marxista do definhamento do Estado, mas que não passa dum amontoado confuso. Lenine redigiu esse livro para tentar captar o movimento libertário russo, muito activo, numa época em que o partido bolchevique não representava grande coisa.

     O que é que se passa na realidade? Os movimentos revolucionários apresentam um certo número de constantes, entre as quais a predisposição para constituir instituições autónomas em que as massas tentam organizar-se. É uma tendência natural. Evidentemente, as autoproclamadas vanguardas não têm lugar nesse movimento inicial, mas fazem o que podem para o recuperar: para isso, têm de ir no sentido da onda para depois, quando tiverem as coisas bem controladas, inverterem o rumo. No caso da revolução russa, não vale a pena fazer um desenho: a história mostrou qual era a realidade do leninismo.

     A Guerra Civil em França serviu bastante para tentar dar um pequeno verniz vagamente libertário ao marxismo — em detrimento de tudo quanto o seu autor pôde escrever noutras ocasiões — e poderá ainda eventualmente servir de manifesto libertário aos marxistas que desejem retocar a fachada da sua doutrina. A carta a Sorge revela a realidade do que Marx pensava.

    Na sua Vida de Karl Marx, um marxista como Franz Mehring observa a propósito da Guerra Civil em França: «Por mais brilhantes que essas análises fossem, elas não estavam menos em ligeira contradição com as ideias defendidas por Marx e Engels havia um quarto de século e já avançadas no Manifesto Comunista (...) Naturalmente, Marx e Engels tinham perfeita consciência dessa contradição...»

     Na realidade, em termos de teoria do Estado e do poder, encontra-se em Marx quase tudo o que se queira.

    Com toda a evidência, Franz Mehring considera o flirt libertário da Guerra Civil como perfeitamente isolado; já Lenine, por seu lado, torna-o (temporàriamente) um dogma marxista, pois que o cita profusamente em O Estado e a Revolução, uma vez que, a certa altura, lhe dava jeito e precisava do apoio dos anarquistas.

     Na Crítica do Programa de Gotha (1875), Marx não diz uma palavra sobre a Comuna como forma de poder revolucionário, enquanto Engels lhe faz uma alusão muito vaga numa carta a Bebel sobre a questão: «Também proporíamos substituir em todo o lado a palavra “Estado” pela palavra “Gemeinwesen”, excelente velho termo alemão que corresponde muito bem ao termo francês “Commune” (7)

     Quando por ocasião do vigésimo aniversário da Comuna, Engels escreve um prefácio à Guerra Civil, exclama: «O filistino social-democrata foi recentemente invadido por um terror salutar ao ouvir pronunciar a expressão de “ditadura do proletariado”. Pois bem, meus senhores, quereis saber com o que é que essa ditadura se parece? Olhai a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado (8)

     Essa expressão engloba acepções completamente diferentes, visto que em 1850, significava ditadura jacobina sem representação popular, ou seja, o contrário do que diz Engels em 1891. A «ditadura do proletariado» é esvaziada de todo o seu sentido dado que pode designar ao mesmo tempo um regime dos mais autoritários e dos mais libertários!

     Mas isso não é tudo. Ainda em 1891, Engels faz a crítica do programa que a social-democracia alemã adoptava em Erfurt, e escreve: «Uma coisa absolutamente certa é que o nosso partido e a classe operária só podem chegar à dominação sob a forma da república democrática. Esta última é mesmo a forma específica da ditadura do proletariado, como já foi mostrado pela grande Revolução francesa (9) Portanto, no mesmo ano, Engels dá como modelo da ditadura do proletariado a Comuna e a república democrática, unitária.

     De facto, a fórmula «ditadura do proletariado» abrange pelo menos três conceitos:

     — no Manifesto e no Programa de Erfurt, significa uma república jacobina e democrática;

     — no 18 do Brumário e nas Lutas de Classes em França, significa uma ditadura revolucionária ultra-centralizada sem representação popular;

     — na Guerra Civil, significa uma federação vagamente libertária.

     As concepções sobre a forma do poder operário em Marx e Engels são determinadas muito mais pelas circunstâncias de tempo e de lugar — com o risco de mudar de opinião no decurso do mesmo ano, como fez Engels em 1891 — do que por princípios bem definidos. Portanto, cada um pode aí encontrar o que desejar, bastando vasculhar no texto apropriado. Os «reformadores» do marxismo dirão que isso só comprova que o marxismo não é um dogma rígido e que é uma doutrina que se procura. De facto, pode-se pensar assim, mas nesse caso terá de se lhe conceder o estatuto de uma simples teoria entre outras — o que de facto é — e retirar-lhe o estatuto de explicação global e definitiva — o que os «marxistas reais» sempre pretenderam que era. Nesse caso, deve-se negar ao leninismo a sua qualidade de «marxista» na medida em que Lenine dizia que o marxismo era um «bloco de aço» de que não se podia retirar nenhuma parte. Dizia ele do marxismo:

     «Não se pode suprimir nenhum princípio fundamental, nenhuma parte essencial dessa filosofia do marxismo fundida num bloco de aço único, sem se afastar da verdade objectiva, sem cair na mentira burguesa e reaccionária (10). »

     E caso alguém desejasse absolutamente convencer-nos de que Marx e Engels falavam sèriamente em matéria de abolição do Estado, haveria sempre a possibilidade de recordar o que Engels escrevia a Carlo Cafiero em 1 de Julho de 1871: «No que se refere à "abolição do Estado", trata-se de uma velha frase filosófica alemã de que nos servimos muito quando éramos jovens imaturos»...

 

Conclusão

 

     Para termos uma abordagem correcta das diferenças entre marxismo e anarquismo, precisamos de chegar a acordo quanto ao que são respectivamente o marxismo e o anarquismo.

     No que se me refere, distingo duas coisas:

     — o marxismo como corpo de doutrina que propõe um certo número de hipóteses teóricas sobre a explicação do capitalismo e que expõe um certo número de ideias sobre os fenómenos históricos da época de Marx, etc.

     Sobre a análise económica, não vejo por que motivo nos deveríamos privar de um instrumento de trabalho que pode ser útil, tanto mais que sobre essa questão não há divergências fundamentais, diga-se o que se disser, entre Proudhon e Marx: eles são, um e outro, dois momentos de um mesmo processo, sendo claro que as coisas não pararam com eles.

     Sobre os fenómenos históricos, tal como expostos em obras tais como as Lutas de Classes em França, por exemplo, devemos ver aí não livros de história definitivos mas exposições do que Marx pensava desses acontecimentos, e nada mais.

     — o marxismo enquanto prática (praxis, para seguir a moda).

     Penso que nunca deverá ser esquecido que, mesmo que se limite a nossa análise ao que o próprio Marx realmente diz — de certo modo, uma leitura fundamental de Marx —, é preciso também ter em conta o que ele realmente fez. Tema que seria preciso desenvolver, mas limitar-me-ei a dois pontos:

  1. a) Durante a revolução de 1848 dissolveu o primeiro partido comunista da história (a Liga dos Cmunistas) para promover a revolução burguesa numa revista liberal, a Nova Gazeta Renana. De resto, pouco depois foi expulso, por esse motivo, facto de que os comunistas não se vangloriam…
  2. b) Em 1872 expulsou da Primeira Internacional a quase totalidade do movimento operário da época (e não sòmente a federação jurassiana, como se julga).

     O marxismo real é isso.

 

[ *Trata-se da revista IRL (Informations et reflexions libertaires) que se publicou em Lyon de 1973 a 1991. (NT) ]

 

Notas

     (1) Neste tipo de afirmações, que não são um caso isolado, revela-se o formalismo jurídico segundo o qual é evidente que, se uma maioria da população decide medidas que vão contra os interesses reais do grande capital, este respeitará o veredito popular porque é a lei. Pertence a Bakunine o mérito de ter mostrado que, em regime capitalista, a democracia só funciona se mantiver a perenidade do sistema.

     (2) De facto, a sua crítica dirige-se sobretudo à social-democracia alemã. Bakunine não tem as informações suficientes para conhecer as críticas que os próprios Marx e Engels fazem ao legalismo dos socialistas alemães.

     (3) Cf. o meu estudo sobre o método em Proudhon e Marx, «Do Sistema das Contradições Económicas ao Capital, ensaio de epistemologia dos fundamentos do anarquismo», Cahiers du groupe Février (esgotado). Cf. igualmente: «A questão económica», La Rue, n° 33, 2° trimestre de 1983.

     (4) Numa emissão da Radio Libertaire a que Rubel e eu fomos convidados, ele parecia querer aproximar Marx e Proudhon e concedia e este último um crédito que lhe parecia recusar nos textos coligidos por Payot em Marx Crítico do Marxismo.

     (5) Nem vale a pena dizer que uma tal argumentação é uma verdadeira aberração do simples ponto de vista do materialismo histórico...

     (6) Bakunine, Obras, Champ libre, III, 166.

     (7) Carta de Engels a Bebel, 18-28 de Março de 1875. In Sobre o Anarquismo e o Anarco-Sindicalismo, Marx, Engels, Lenine. Edições do Progresso, Moscovo.

     (8) Cf. Edições Sociais, 1968, p. 302.

     (9) Cf. Marx, Engels, Crítica dos Programas de Gotha e de Erfurt, Edições Sociais, p. 103 [ed. francesa].

     (10) Lenine, Materialismo e Empiriocriticismo, Edições do Progresso, p. 461  [ed. francesa].

 

(tradução de asb para o Portal Anarquista)

 

aqui: http://1libertário.free.fr/RBerthier38.html

 

(Desde o Brasil) ENTREVISTAS COM ANARQUISTAS E COLETES AMARELOS EM FRANÇA

Março 26, 2019

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Do Brasil

DE OLHO NA REVOLTA SOCIAL DO OUTRO LADO DO OCEANO:
COLETES AMARELOS: GUERRA CIVIL OU GUERRA SOCIAL?

Introdução

 

Desde novembro do ano passado, a França toda está sacudida pelo maior movimento social vivido no país desde 1968. Estamos frente a um movimento heterogêneo e anárquico por essência já que nenhuma representação oficial do movimento é aceita por parte do corpo do movimento. O que está acontecendo na França? Que posição tomam xs anarquistas? Podemos falar de Insurreição? De Revolução Social?

 

Intrigadxs, alguns anarquistas realizaram um par de entrevistas com companheirxs que moram na França e que de alguma ou outra maneira, decidiram se envolver com o movimento. Uma parte dessas entrevistas foi já publicada no número 3 da revista anarquista “Crônica Subversiva” de Porto Alegre. Entretanto como o debate nos parece urgente enviamos uma parte das entrevistas pela internet.

 

A nossa intenção ao realizar essas entrevistas é antes de tudo entender quais são as posições dxs anarquistas em relação ao movimento, quais são suas formas de ação e como elas se comunicam com o movimento social. Para isso, buscamos provocar o debate trazendo aqui diferentes posicionamentos em relação à ação anarquista nos movimentos sociais, tudo isso no intuito de nos provocar, desde o lugar onde estamos para (re)pensar nossos meios e métodos de ação.

 

Das 4 respostas recebidas até agora, encontramos companheiros que se identificam como “Indivíduos Anarquistas que moram em Paris” que chamamos aqui de “IA”, outro companheiro “T” que chamou-se de: “um anarquista de uns 40 anos, desempregado de longa data que mora na periferia de Paris.” Mais um companheiro anarquista da região
metropolitana chamado aqui de “A” e por fim, umas/uns companheirxs anarquistas de Toulouse que chamaremos aqui de “AT”.

 

frança

Como nasceu o movimento dos Colete Amarelos

1) Primeiramente poderiam explicar como nasceu o movimento dos Coletes Amarelos? Qual foi a primeira reação do/dos movimentos anarquistas em relação ao movimento social?

 

IA: O movimento dos Coletes Amarelos nasce de uma petição cidadã na internet contra um novo imposto sobre o combustível. Lançada em maio de 2018, a petição circula amplamente nas redes sociais, é cada vez mais compartilhada e assinada até que chegara a mais de um milhão de assinaturas. Após, alguém posta um vídeo na web chamando a colocar um colete amarelo no para-brisa do carro como sinal de protesto. No início de outubro, uma nova chamada é lançada, convidando a uma mobilização no dia 17 de novembro de 2018. Nós (quase totalmente alheios às redes sociais), começamos a perceber a existência desse movimento uns dez dias antes dessa data porque as pessoas falavam disso e alguns diziam que ia explodir. A tensão sobe e os jornalistas mediatizam muito o evento. A mobilização é muito forte desde o início, notadamente nas zonas rurais. Essa primeira data consiste sobretudo em uma multiplicação de bloqueios, com a ocupação de trevos e de pedágios de estradas. Contamos já com os primeiros mortos do movimento (agora são 12), manifestantes atropelados pelos automobilistas que forçam os bloqueios. A determinação dos manifestantes é impressionante, temos os primeiros enfrentamentos com a polícia. Muito rapidamente, a questão do preço do combustível é ultrapassada por uma raiva mais geral contra outros impostos e taxas que golpeiam sobretudo as classes mais pobres. Os estudantes secundários (que já estavam mobilizados) entram no baile, bloqueiam os colégios e se revoltam contra a polícia. É a explosão de um “saco cheio” contra a vida cara demais (“não chegamos ao fim do mês” escuta-se nas entrevistas). Pede-se a demissão(impeachment) de Macron, que nos olhos da maioria dos manifestantes representa “a oligarquia no poder”. Não tem que esquecer que o atual presidente e ex-ministro da economia nunca escondeu seu desprezo de classe e sua parceria com os patrões. O imposto no combustível foi sem dúvida a gota que transbordou o copo. Esses momentos felizes de revolta tiveram lugar em Paris, mas também, em muitas cidades do país, inclusive em regiões, supostamente, pacificadas. Isso se propagou também na “França de Além Mar”, notadamente na ilha da Reunião, que, em dezembro de 2018 foi sacudida por uma verdadeira onda insurrecional.

A partir do 24 de novembro e até hoje, o movimento dos Coletes Amarelos se articulou ao redor de ocupações de trevos e pedágios de estradas assim como jornadas de mobilização semanais nomeados Atos (Atos 1, 2, etc.). Esses Atos, sobretudo durante as primeiras semanas são caraterizados por violentos enfrentamentos com a polícia, a destruição e saques de comércios, ataques a bancos e edifícios públicos. Motins de um jeito raramente visto na história recente do país. Além desses momentos públicos e coletivos, desde o início do movimento, assistimos a um grande onda de ações decentralizadas anônimas que em alguns casos são realizadas por grupos de indivíduos que se identificam como “Coletes Amarelos” e em outros, poderiam igualmente ser contribuições de companheiros anarquistas ou outras minorias revolucionarias: incêndios de pedágios e radares nas autopistas, sabotagens de infraestruturas de transporte (autopistas e trens), energéticas (postos de gasolina, transformadores, centrais eólicas ou postes elétricos), de comunicação (antena de fibra ótica), incêndio a edifícios públicos (principalmente centros de impostos mas também prefeituras e tribunais), ataques à sedes de diferentes partidos políticos, moradias de políticos e as vezes agressões contra prefeitos, deputados, e vice-prefeitos, ataques lugares da mídia (rádio, jornais, televisão), bloqueios e as vezes saques de grandes depósitos como Amazon, Carrefour ou Geodis.

Todo isso surgiu de uma maneira muito imprevisível e inédita. De um lado, esse movimento de revolta de tal tamanho, que rechaça os partidos e os sindicatos nos entusiasmou, por outro, não somos cegos frente a algumas tendências que emergem massivamente nos discursos dos Coletes Amarelos. Não podemos fechar os olhos frente a uma subida do nacionalismo que agita o fantasma do “povo francês contra a oligarquia” e não nos reconhecemos em um radicalismo cidadão que aspira ao “poder do povo”, quer dizer, à transformação do Estado, por exemplo através da instauração do Referendum de Iniciativa Cidadã [1].

Isso não quer dizer que não achamos que a situação atual não seja interessante, vemos que estamos em um momento em que a revolta se generaliza e isso nos alegra. Na revolta, podemos descobrir o sabor da liberdade e transformar radicalmente nossas relações com outros indivíduos.

 

T: Inicialmente, o movimento foi lançado em outubro de 2018 na internet, nas « redes sociais » após a uma nova subida do preço do combustível [2]. As pessoas que deram origem ao movimento não se conheciam e não vinham de âmbitos militantes.

O movimento se tornou consistente a partir das primeiras ocupações de rotatórias e do primeiro protesto agitado na avenida dos Champs-Elysés, em Paris, no dia 17 de novembro 2018. Desde então, o movimento tomou uma forma inédita mostrando uma desconfiança, até uma hostilidade em relação aos partidos políticos e os sindicatos. Desde o primeiro dia, o movimento reuniu pessoas muito diferentes politicamente e socialmente. Muito rapidamente a questão dos impostos e da subida do preço do combustível foi ultrapassada: esta reivindicação principal parecia secundaria em relação à raiva generalizada. A raiva do movimento dos Coletes Amarelos é principalmente um “estar de saco cheio” das desigualdades sociais, de não conseguir chegar a fim do mês, e do fato que os ricos (politiqueiros, burgueses de todo o tipo) “se empanturrarem nas nossas costas”, para retomar uma expressão muitas vezes utilizada neste movimento. Por fim, desde o início do movimento, um único slogan faz a unanimidade durante as grandes jornadas de manifestação (os famosos “Atos” semanais que começaram no 17 de novembro): “Macron: demissão”.

Em um primeiro momento, o movimento botou seu foco inicial na questão dos impostos e pelo fato que reunisse pessoas de frentes políticas opostas, o movimento dos Coletes Amarelos gerou nxs anarquistas tanto desconfiança quanto entusiasmo. Alguns participaram ativamente desde o primeiro dia enquanto outros até hoje rechaçam participar. Como é o próprio movimento anarquista, talvez mais do que em tempos “normais”, não existe uma posição comum reunindo todas as tendências anarquistas. E no seio mesmo de cada uma dessas tendências, temos indivíduos, grupos de afinidades, coletivos e organizações tendo posições divergentes em relação ao movimento dos Coletes Amarelos.

 

A: O movimento dos Coletes Amarelos nasceu após o aumento dos preços do combustível ao qual se adicionava o aumento explosivo dos radares nas estradas e as multas de trânsito cada vez mais numerosas sobretudo quando o governo Macron fez passar o limite de velocidade nas estradas de 90 a 80 km/h em julho de 2018. Nos anos 70, o Estado subvencionou a construção das estradas em uma parceria pública/privada com Vinci [3] e outros. Claramente os impostos dos franceses pagaram uma parte das obras e, uma vez essas obras rentabilizadas para esses gigantes da indústria, os pedágios iam supostamente desaparecer. Mas é tudo o contrário que aconteceu: em 1995, o governo Jospin [4] vendeu definitivamente as estradas a esses grandes grupos, inclusive inscrevendo no contrato que os ligava ao Estado um aumento anual das tarifas ainda mais forte que a inflação. Para dar-lhes uma ideia, hoje um trajeto nas estradas da França custa tão caro em gasolina quanto em pedágios, que antes do último golpe petroleiro, saiam ainda mais caro que a gasolina. Não é casualidade que esse movimento nasceu nas rotatórias: foi primeiramente um movimento de pessoas que moravam fora das cidades e para quem o carro representava uma parte colossal das suas despesas. Porém, seria falso restringir o movimento a essas únicas preocupações, mesmo se claramente a grande maioria das reinvindicações se focavam no poder de consumo. Muito rapidamente, a partir do 1 de dezembro (o movimento começou no dia 17 de novembro), as perspectivas se expandem: reestabelecimento do ISF (Imposto sobre a Fortuna), fazer pagar os ricos, possibilidade para o povo de destituir os dirigentes, vontade de “democracia” direta e real. O que, na minha opinião, temos que perceber é que, muito rapidamente, o movimento desafiou sem concessão, e de forma generalizada todos os intermediários institucionais: políticos, imprensa, sindicatos, polícia, grandes empresas… em suma, quase todos os atores maiores de uma sociedade capitalista.

A visão dxs anarquistas é, ainda hoje, muito heterogênea. Alguns simplesmente esnobam o movimento. Acho que por desprezo às classes médias trabalhadoras, que vivem fazendo crédito para consumir, etc. e que não usam os elementos da linguagem do militante experiente. Outrxs, ficaram afastadxs por medo, sem dúvida, do seu vazio teórico, da sua aparente pobreza política. Outros ainda se jogaram dentro por amor (as vezes) cego, à insurreição, prontos para acolher a Grande Noite. Por fim, uma parte foi para ver, antes de começar a atuar.

 

AT: O movimento nasceu a partir de um chamado nas redes sociais em relação ao preço do combustível. Na região de Toulouse (sudoeste da França), se materializou com uma presença quotidiana nas rotatórias ao redor da cidade e nos pedágios. Depois de duas semanas, tivemos as primeiras manifestações do sábado. Por nosso lado, foi um pouco complicado em um primeiro tempo para nos posicionarmos e nos apropriarmos do movimento, vendo esse espectro político um pouco vago, abraçando também reivindicações nacionalistas (por exemplo a favor do fechamento de fronteiras ou a denunciação de pessoas migrantes em uma rotatória no norte da França). O que começou a interessar o movimento anarquista é o caráter dos distúrbios das manifestações, o rechaço dos partidos e sindicatos e as reivindicações de classe. Porém foi também a porta aberta para dinâmicas fascistas se desenvolverem e temos a sensação que levamos um tempo para acharmos uma maneira de nos encontrar nesse movimento (e ainda hoje continua.)

 

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Fora dos partidos politicos e sindicatos oficiais

2) Aqui, temos os ecos que esse movimento se reivindica de nenhum partido político nem está relacionado com sindicatos, como se pudéssemos sentir um estado de “saco cheio” geral da miséria social e um rechaço à política tradicional. Pensam que isso é um “terreno fértil” para propagar as ideias e práticas anarquistas? 

 

T: Com certeza. Este rechaço é levado por uma grande maioria do movimento e assumido assim desde o início. De fato, há muito em comum entre o movimento dos Coletes Amarelos e as bases anarquistas: particularmente o rechaço do governo, dos partidos políticos, dos sindicatos e outros “parceiros sociais” (esses “corpos intermediários” encargados de acalmar a revolta e permitir gerar boas relações entre o Estado e os manifestantes), e obviamente a ação direta. O movimento existe principalmente através das ações ilegais, indo desde o bloqueio filtrantes [5] nas rotatórias até o incêndio de prefeituras. As ações realizadas desde novembro de 2018 são inúmeras e muito variadas, os meios típicos de ação de uma insurreição (bloqueios, sabotagens, distúrbios, …) e os alvos são quase sempre os mesmos que os que os anarquistas costumam atacar (edifícios ou lojas capitalistas e/ou estatais).

Particularmente em novembro-dezembro 2018, vimos os bairros mais ricos de Paris inundados por revoltados que destruíam tudo no seu caminho, inclusive na famosa avenida dos Champs-Elysées, em uma espécie de ódio de classe que mostrava que tudo isso ia além de uma simples questão de imposto sobre o combustível (esse foi cancelado já em 5 de dezembro, o que não impediu que o movimento perdurasse).

Por fim, o funcionamento sem chefes e a multiplicação das assembleias para se organizar de maneira auto-gestionada mostram outro ponto em comum com as práticas anarquistas. Assembleias se formaram durante o movimento e existem ainda, se desfazem e reaparecem sob outras formas. Conversa-se muito também em fóruns, grupos virtuais em Facebook ou chats como Signal, Telegram, Whatsapp…

Para relativizar um pouco, temos que entender que esse movimento é muito heterogêneo, que reúne pessoas com culturas políticas muito diferentes, e que se o nojo do sistema atual é o ponto comum de todas as pessoas que participam do movimento dos Coletes Amarelos, há também várias pessoas que buscam impulsar sua carreira nas costas do movimento: alguns antigos políticos integraram o movimento para encontrar alguns seguidores para guiar, outros buscam formar partidos políticos ou listas para as próximas eleições europeias. Porém, isso não se faz sem agitação, os que se autoqualificaram de “representantes dos Coletes Amarelos” até o ponto de considerar um encontro com ministros foram confrontados frente a raiva do movimento, recebendo um monte de críticas argumentadas, assim como também mensagens de insultos, ameaças de morte, etc.

 

IA:  Efetivamente, o movimento expressou inicialmente um rechaço dos partidos, dos sindicatos e da grande mídia, um saco cheio da política tradicional que sempre faz o interesse dos ricos. Hoje, temos a sensação que os sindicatos e alguns partidos (principalmente de esquerda, mas não somente) estão por recuperar e enquadrar a raiva que inicialmente se expressou de maneira espontânea e selvagem. Trata-se de um “terreno fértil” para as ideias anarquistas? Difícil de dizer, e, em todo caso, não nos questionamos nesses termos. Não acreditamos que nosso objetivo seja educar “o povo” ao anarquismo nem que os anarquistas devem guiar a insurreição. Obviamente, tratam-se de momentos onde nossos discursos podem ser parcialmente entendidos e nossas práticas compreendidas, mas, temos a sensação que muita gente está experimentando formas de auto-organização, de autonomia política e de ação direta sem passar pelo anarquismo. E que bom! A difusão de nossas ideias faz parte de nossa atividade cotidiana e não é porque muita gente começa a se revoltar que isso se torna mais importante ou urgente. A questão que nos propusemos mais adiante: como contribuir a aprofundar a desordem? Como complicar a tarefa das tentativas de pacificação lideradas pelos politiqueiros de todas as cores?

 

AT: Em Toulouse, os vínculos entre o movimento anarquista e os Coletes Amarelos passa essencialmente pelos quadros anti-repressão e pelas modalidades de ação. Porém, vemos que é bastante complicado aportar em relação às questões de “fundo” político. Uma parte das pessoas querem manter um desfoque político para evitar a todo custo uma ruptura. Isso impede posicionamentos claros frente a questões essenciais. Por exemplo, podemos ver pessoas protegendo os gambés cantando “todo mundo odeia a polícia”. É bastante estranho. Apesar de uma relação perturbada com o político, uma grande parte do movimento segue reivindicando o movimento como apolítico. Então, por um lado a propaganda é possível e oferece quadros de discussão bastante interessantes, por outro, nos chocamos com um muro, onde nossos textos e panfletos são considerados como “radicais demais” ou querendo dividir.

 

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O regresso da acção directa

3) Podemos sentir também uma agradável explosão do movimento que se traduziu por ações diretas contra os símbolos materiais do Estado e do capital nas ruas das grandes cidades como também em regiões remotas. Imaginamos que as mídias e o poder tentaram recuperar essas violências para dividir o movimento entre os “bons manifestantes cidadãos” e os “vândalos”. Como isso se traduziu no seio do movimento e na relação entre anarquistas e Coletes Amarelos?

 

IA: O Estado tentou desde o início do movimento distinguir « os Coletes Amarelos » das « minorias de vândalos da extrema-esquerda e da ultradireita », assim como os « jovens que vieram para saquear tudo ». Temos a sensação que nas primeiras semanas esse discurso funcionou só parcialmente, nas ruas sentimos uma certa solidariedade nos motins e essas categorias deixavam de existir. Para muitos, a violência não é legitima em si, mas se torna legitima frente à violência do Estado, da polícia. Assim, muitas pessoas ao longo das jornadas de sábado se “radicalizam”, mudam suas formas de “vestimenta” ou de ação, apontando cada vez mais à violência do Estado, à violência da polícia, porque há muitos feridos, inclusive graves mesmo. Porém, uma parte mais cidadã do movimento, que se dissocia da quebradeira nas manifestações sempre existiu. Nas últimas semanas, as “lideranças” dos Coletes Amarelos, indivíduos muito presentes nas redes sociais e muito mediatizados, apelaram a manifestar-se sem violência, reproduzindo nos seus discursos essa distinção entre Coletes Amarelos e vândalos. Isso entra no jogo do Estado que está querendo fazer passar uma nova lei anti-vândalos [lei anti-casseurs]. Os encontros semanais do sábado tornam-se cada vez mais manifestações “tradicionais” (pelo menos em Paris, onde nós moramos), com o roteiro entregado à prefeitura por esses líderes do movimento, com tentativas de impedir que o movimento transborde, instaurando serviços de ordem. Felizmente, a imposição desses serviços de ordem não é consensual no seio do movimento.

 

T:Neste assunto, como em tudo o resto, não existe consensus no meio dos Coletes Amarelos. Como acontece em cada revolta, o poder grita ao escândalo, critica as violências dos rebeldes sem nunca mencionar a violência social cotidiana que está na origem das revoltas. O presidente, Macron, seu primeiro ministro Edouard Philippe e o ministro do Interior Christophe Castaner não pararam de falar merda dos “maus Coletes Amarelos”. Mesma coisa na imprensa onde todo um saco de jornalistas, politiqueiros e especialistas apelaram a um endurecimento da repressão. Enquanto uma grande maioria da população se rebela, da extrema direita (do RassemblementNational “Junta Nacional” de Marine Le Pen) até a extrema esquerda (da France Insoumise “França Insubmissa” de Jean-Luc Mélenchon) passando obviamente por todos os partidos ditos “moderados”, estigmatizam os “vândalos” (“casseurs”) ao mesmo tempo em que se reconhece, numa linguagem velada, que sem eles Macron não teria retrocedido nada na questão dos impostos.

O que é mais complicado, mas recorrente nas situações de uma revolta, é que encontramos também um grande número de “bombeiros pacificadores” no seio mesmo do movimento. E é obviamente muito mais fácil de dizer abertamente, diante de uma assembleia de 80 pessoas ou frente à uma câmera de televisão que estamos contra as violências dos manifestantes. Não existe nenhum risco para isso. Mas, expor-se a explicar porque achamos justo de arrebentar a porta de um ministério, de apedrejar a polícia, de saquear um supermercado de luxo ou de incendiar uma viatura de polícia, é mais complicado.

Enquanto anarquistas, é então importante termos um discurso sobre isso, apoiar as ações diretas como estratégia de luta, independentemente do grau suposto de violência. E obviamente, de atuar “como de costume” ao lado dos revoltados, solidários nas ações ofensivas como nos momentos de repressão. Como já dizíamos em 2006 durante o movimento contra o CPE [6] e em 2016 durante o movimento contra a lei Trabalho (loiTravail), “somos todos vândalos”.

 

AT: Mesmo que não seja muito claro, podemos ver que uma parte do movimento se reivindicaria mais como “cidadã” e uma outra bastante mais solidaria da pluralidade dos meios de luta do movimento. Por exemplo durante o Ato 12 [2 de fevereiro], alguns Coletes Amarelos contra a quebradeira foram conversar com o prefeito de Toulouse para negociar um trajeto e declarar a manifestação. Felizmente, isso foi muito criticado e somente houve 30 pessoas no seu comício. Essa iniciativa vinha principalmente dos comerciantes. Então, a tentativa de divisão não funcionou para nada. Nos tribunais, vemos que muitas vezes, as pessoas detidas assumem seus atos, tanto criticando a justiça quanto assumindo sua participação no movimento. Da mesma maneira, as pessoas encarceradas são, na grande maioria, solidarias do movimento, mantendo, apesar de penas muitas vezes pesadas, posições de não-dissociação e de manter a sua solidariedade em relação ao movimento, no seu conjunto. Partindo do quadro de organização contra a repressão que recai sobre os Coletes Amarelos, alguns anarquistas tentam fazer o vínculo levando a questão da prisão como um todo, apontando a romper a especificidade da solidariedade, em relação somente aos presos políticos. Em relação à imprensa, observa-se um rechaço da imprensa burguesa no seu conjunto, nos discursos e nas práticas: jornalistas mandados embora dos protestos ou ataques a sedes de imprensa. Essa desconfiança em relação com a mídia vem sobretudo do discurso veiculado por eles em relação aos “vândalos” e mais geralmente sobre o desprezo que estes manifestam em relação ao movimento. Em relação aos ataques em si, observamos que os alvos aceitos por todos e todas são os bancos, as seguradoras e cada vez mais as agencias imobiliárias. Porém, persistem reticências e divisões em relação ao material urbano (estações de ônibus, painéis publicitários, …) e à prática de “auto-redução” [saque] nos comércios.

 

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Os anarquistas e o movimento dos Coletes Amarelos

4) Imaginamos que entre xs anarquistas também existem diferentes maneiras de fazer parte do movimento, poderiam nos explicar qual é a sua e porquê?

 

IA: O movimento anarquista na França é muito heterogêneo e as posições entre companheiros em relação ao movimento dos Coletes Amarelos são múltiplas. Há alguns que desde o início têm uma postura muito crítica, colocando em evidencia o lado nacionalista, conspirativo e a presença da extrema direita. Para nós, tratam-se de aspectos não negligenciáveis, mas que não caracterizam o movimento inteiro, que expressa sobretudo uma raiva contra o governo e o poder econômico. Outros anarquistas se lançaram com entusiasmo no movimento, alguns inclusive conseguem se identificar como Coletes Amarelos. Nós não. Não nos reconhecemos com a maioria das ideias levadas pelos Coletes Amarelos, não lutamos pelo preço do combustível, não demandamos mais Estado social, nem um aumento do SMIC (salário mínimo), não somos “A França com raiva” porque cuspimos na França como em todas as outras nações. Não nos organizamos nas redes sociais e não gostamos dos líderes inclusive quando se tratam de líderes revolucionários, porém, nos alegramos da revolta, da desordem generalizada e pensamos que podemos contribuir com isso desde ideias que são nossas, quer dizer, sem participar diretamente do movimento dos Coletes Amarelos (ocupações de rotatórias, assembleias). Nos momentos da raiva social, a ação anarquista pode ser mais eficaz e pertinente se os companheiros e companheiras já têm bases sólidas de afinidade, uma experiência prática e um conhecimento do terreno. Algumas contribuições reivindicadas pelos companheiros nos parecem muito importantes, por exemplo, o incêndio de uma igreja, de uma torre hertziana, assim como da sede da rádio informativa France Bleu, tudo isso em Grenoble. Mas, podemos supor que numerosos atentados e sabotagens reivindicados, como já o mencionamos, constituem contribuições vindo de companheiros do movimento em curso.

 

T: Vou me contentar de responder aqui só por mim, em relação as minhas escolhas de participação e intervenção no seio do movimento dos Coletes Amarelos, porque seria longo e complicado demais de levantar um painel das diferentes abordagens que os anarquistas têm em relação ao movimento. Demorei mais que outros, em aceitar que o movimento levava consigo algo insurrecional, que tudo isso ia além de uma história de imposto e de combustível. Mas, desde o início de dezembro, o integrei profundamente! Participo com minha “bagagem política”, meus conhecimentos e meus saberes-fazeres que são uteis, para mim, mas também para todo o movimento. Me permito dizer isso sem falsa modéstia, vinte anos de manifestações, de motins, de assembleias, de ocupações, de bloqueios, de greves, etc. não é irrelevante quando nos encontramos em meio de pessoas que expressam uma raiva intensa mas participam, às vezes aos 35 anos, de sua primeira manifestação… e se falo isso sem falsa modéstia, o falo também reconhecendo que o frescor rebelde do movimento em novembro-dezembro permitiu a realização de ações diretas de um tamanho relativamente incrível. O conhecimento do “terreno” e os costumes de luta que temos são claramente triunfos para compartilhar, mas, podem também constituir limites. É difícil analisar a ausência aparente de apreensão e medo que podíamos ver nos descontrolados nas ruas de Paris (e sem dúvida também em outros lados), pelo menos no 24 de novembro e no 8 de dezembro, e em mediana medida no 5 de janeiro.  A raiva social transbordava claramente os costumes militantes e ativistas “habituais”. Poderíamos dizer a mesma coisa de levantamentos relativamente recentes como durante a revolta incendiaria de outono 2005, o movimento contra o CPE em 2006 ou mesmo os mais recentes contra a Lei do Trabalho em 2016 e após a agressão de Théo, em fevereiro 2017 [7]. Mas, tenho a sensação que as formas que tomou a explosão de raiva do movimento dos Coletes Amarelos tem que ver com diferentes fatores: por um lado, os adquiridos ofensivos desses movimentos de lutas recentes que marcaram uma parte das pessoas que participam do movimento (pelo menos se não na forma, no conteúdo), aos quais podemos adicionar os tumultos nos Champs-Élysées do último verão após a vitória do time da França na copa do mundo de futebol (essa avenida é um santuário intocável durante os movimentos sociais habituais enquanto constitui obviamente um alvo muito pertinente, economicamente e simbolicamente), os tumultos rurais na ZAD [Zona a Defender] de Notre-Dame-des-Landes em 2012, o movimento dos BonnetsRouges [8] [Toucas Vermelhas] em 2013-2014, tantos momentos que assentam a ideia de que temos motivos e razão para nos revoltarmos. Tudo isso é para o imaginário “revoltado” que pode ser presente na cabeça de cada um de nós e não somente nos anarquistas! Para o resto, muita gente veio com sua raiva e seu saber-fazer. Por exemplo, no início de dezembro e janeiro, maquinas de construção foram utilizadas durante os tumultos ou manifestações selvagens nas ruas mais ricas da capital para mover veículos em chamas no meio da estrada e reforçar as barricadas, ou para quebrar a porta de um ministério e várias vitrines de bancos… Na verdade, nunca tinha visto isso antes. Até agora, as máquinas de construção eram, no melhor dos casos, incendiadas, agora estão sendo utilizadas com sensatez e logo incendiadas.

Mas, me emociono e me perco!

Nas manifestações selvagens e nos momentos de tumultos, o saber-fazer anarquista é sempre útil. Mas minha participação no seio desse movimento, apesar de tudo o que acabei de contar, é provavelmente menos focada nos tumultos que “de costume”. Primeiro porque pelo menos até a metade de janeiro, se um monte de anarquistas participou nesses momentos de desordem nas ruas, sua/nossa presença não era decisiva, ou em todo caso muito menos que por exemplo em 2016 durante o movimento contra a lei do Trabalho, onde tínhamos às vezes a sensação que sem nós (os anarquistas e outros rebeldes autônomos, antifa, etc.), teria tido somente desfiles bunda-mole entre slogan pesados, cachorros quentes e música ruim. Mas, porque o movimento dos Coletes Amarelos é particularmente confuso ao nível das ideias e das perspectivas que leva, porque é inédito ao nível da sua composição (encontramos principalmente pessoas que têm raiva do sistema e da burguesia no poder, às vezes chamada “oligarquia”, muita gente se dizendo “apolítico” ou “apartidário”, mas também muita gente politizada indo de anarquistas, antifas, etc. até a extrema direita, passando por membros de diversos partidos políticos, soberanistas/nacionalistas e/ou de extrema esquerda), me pareceu importante participar ativamente dos debates internos do movimento, indo nas assembleias de luta, distribuindo panfletos e escrevendo nas paredes… bom, não é como se “de costume”, não fazia isso, mas digamos que aí me pareceu ainda mais importante.

Ah sim, o lance novo para mim, foi de ter feito o “esforço” de me inscrever e participar em grupos de discussão virtuais dos Coletes Amarelos em chats do tipo Signal, Whatsapp, Telegram… São claramente não os meios mais interessantes de intervenção no seio de uma luta, mas é inegável que permitem ao mesmo tempo, ter uma ideia a mais do que se diz entre os participantes do movimento e também de aportar nossas ideias. Foi notadamente útil e ainda o é, sobre temas polêmicos como a presença da extrema direita no movimento, ou ainda a questão da violência (sim, mesmo num movimento selvagem como esse, com cenas de tumultos incríveis, encontram-se pessoas que afirmam que esse movimento é “pacifico” e que “os vândalos desacreditam o movimento”!)

 

A:Na minha opinião, o que é essencial é entender que a imensa maioria dos Coletes Amarelos são manifestantes primários, para a maioria, era a primeira vez que bloqueavam algo, que se encontravam fora da lei. Isso se vê muito com a ingenuidade com a qual enfrentaram a repressão policial e judicial. Os números são complicados de verificar mas somente no mês de dezembro houve mais de 4000 detenções, e pelo menos 200 penas de prisão, sistematicamente acompanhadas de uma interdição de manifestar durante 3 anos (isso nunca foi visto na França, e ao parecer é só um início). Entre os condenados quase todos tinham uma ficha limpa e foram reconhecidos culpados somente em base as suas próprias confissões, tipo: “sim, lancei uma garrafa na polícia porque bateram em nós sem motivo, somente me defendia.” Etc. Quando conhecemos a reação do poder judiciário frente a processos, na maioria do tempo, esvaziados de prova material, nos damos conta do lado ingênuo de tais confissões. Mas, considero que não devemos olhar para essa ingenuidade com arrogância ou desprezo. Acreditei na justiça até minha primeira detenção… As pessoas necessitam ter essas experiências e enquanto anarquistas “experientes” creio que devemos absolutamente deixar o tempo, tomar o tempo, porque esse movimento somente está começando. Enquanto os dois últimos movimentos da Lei do Trabalho mostraram a incapacidade dos profissionais da luta autônoma para inventar novas formas de luta, de ir além das manifestações sindicais, pessoas que nunca se manifestaram e que alguns olham com desprezo, fizeram isso em menos de dois meses.

 

AT: Uma presença na rua primeiro, para criar slogans, mexer com os fascistas e participar da ação direta. De maneira mais organizada, nos pareceu mais “simples” tomar parte ao quadro da “anti-repressão” organizando permanências para os familiares, amigos e companheiros dos detidos, a escritura de cartas para pessoas encarceradas e a difusão de conselhos jurídicos sob a forma de panfletos ou oficinas. A aproximação do movimento sob o ângulo da anti-repressão é uma maneira “mais fácil” de ser útil ao mesmo tempo em que pode-se aportar ideias políticas às quais pertencemos.

 

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O futuro do movimento

5) Após quase 3 meses de movimento social que não parece próximo a acabar, quais são as perspectivas? Será que a esquerda sindicalista está por recuperar o movimento? Como se posicionam os Coletes Amarelos anarquistas diante, por exemplo, da candidatura de uma lista “Coletes Amarelos” nas eleições europeias?

 

IA: Como previsível, assistimos a uma ritualização dos encontros semanais, à sua normalização e a tentativas de controles e enquadramentos por partidos, sindicatos inclusive pela extrema-esquerda. Como previsível, políticos de todas as cores, desde a extrema esquerda à extrema-direita, mas também, novos políticos cidadãs, tentam liderar o descontentamento em direção às urnas. Não tem surpresa então. Porém, as pessoas continuam se organizando desde baixo, fora essas tentativas de enquadramento e de recuperação. Existe uma raiva difusa, os bloqueios, as sabotagens, os incêndios de edifícios públicos e os ataques contra políticos seguem. Não acreditamos que as tentativas de recuperação dos “partidos dos Coletes Amarelos” poderão apaziguar a raiva difusa e colocar fim à guerra social. Pelo menos, é o que esperamos!

 

T: No dia 5 de fevereiro, teve um chamado à greve geral, lançada pelos Coletes Amarelos, os principais sindicatos dos movimentos sociais (CGT, Solidaires,…) e dos partidos de extrema esquerda tipo NPA [9], mas, resultou em uma derrota relativamente esperada. Finalmente, a ofensiva voltou no sábado 11 de fevereiro, durante o Ato 13. Em Paris, a manifestação dos Coletes Amarelos se rearticulou com o aspecto selvagem e dos distúrbios, no início de dezembro [10], mas, o aspecto massivo não é mais o mesmo. Se há ainda muitas assembleias e auto-organização, me parece que o movimento está no baixo da onda e parece ainda muito heterogêneo. É então difícil de apresentar as perspectivas globais, mesmo se a raiva contra o poder do dinheiro e das elites políticas segue intacta.

Em relação às questões ligadas à extrema direita, seguem presentes. No último sábado (11 de fevereiro), enfrentamentos entre antifa e fascistas em Lyon tiveram como consequência uma derrota dos fascistas, porém, enraizados em Lyon. Na semana anterior, foi em Paris que os fachos foram retirados da manifestação dos Coletes Amarelos. A mesma coisa aconteceu em Bordeaux nas semanas anteriores, assim como em outras cidades. Ou seja, é cedo demais para concluir que a extrema direita está fora do movimento.

Em relação à esquerda sindical, se começa a encontrar cada vez mais seu lugar nas manifestações, segue atrás, e a desconfiança dos Coletes Amarelos em relação aos sindicatos segue sendo bastante significativa. De maneira geral, independentemente das suas tendências políticas, os Coletes Amarelos são muito críticos em relação a tudo que poderia se assimilar à recuperação política. As listas mais ou menos etiquetadas ou oriundas do movimento dos Coletes Amarelos para as eleições europeias são até agora muito impopulares, talvez até mais impopulares entre os Coletes Amarelos que no meio do resto da população. As e os que se encontram na cabeça dessas listas são vistas como traidores ou como recuperadores. Então, o ponto de vista dos Coletes Amarelos anarquistas em relação a isso é fácil de adivinhar: é o mesmo.

Muitos anarquistas (e aparentados) que se envolveram no movimento dos Coletes Amarelos chamam à auto-organização durante as assembleias, a buscar meios horizontais e decentralizados para ficar conectados e conseguir se organizar a maior escala, sempre partindo das assembleias locais. Contrapondo, a reivindicação do RIC é vista como uma maneira de fazer calar a revolta criando uma ilusão de poder popular mediante possibilidades de votos temáticos…

De um lado, temos perspectivas de auto-organização sem passar pelo Estado nem por outras vias de hierarquia política e do outro, teríamos o retorno a um vínculo social reformista com os mesmos modos de campanhas (com os mesmos problemas habituais de financiamento, midiatização e lavagem cerebral típico da sociedade espetacular-mercantil) para votar “sim” ou “não” a tal proposição, e obviamente o Estado que decide em última instancia. Então, sem querer idealizar as formas que tomam as assembleias de Coletes Amarelos por enquanto (e ainda menos o conteúdo), não há muita dúvida enquanto às opções que se perfilam nas assembleias de luta, o RIC ou as listas eleitorais para as eleições europeias.

Pequena citação para terminar:

“Na França, infelizmente, as pessoas não gostam muito da polícia, as pessoas querem matar policiais. Temos de repetir isso ainda, nas redes sociais se vê muito:  chamados para assassinato, chamados a foder com a polícia, o problema está aqui, existem coquetéis Molotov que são atirados contra a polícia, policiais que são vítimas por ser atingidos por bola de petanca [jogo tradicional e popular francês], por garrafas com ácido, com cabo de picareta, então, entendo efetivamente que, seria muito bom nós termos manifestações pacificas, nós gostaríamos muito.” Axel Ronde, secretário geral do sindicato VIGI-police (uma organização sindical que antigamente pertencia à CGT), 18 de janeiro de 2019, no programa de TV: ArrêtssurImages [11].

Na real, frente aos discursos de auto-vitimização por parte dos representantes dos porcos, contamos em menos de 3 meses de movimento, desde o 17 de novembro, entre as pessoas feridas pelas armas da polícia, pelo menos 20 pessoas com um dos olhos arrancados, 5 pessoas com uma mão arrancadas e uma pessoa falecida [12].

 

AT: Então, em Toulouse, vemos que a presença da extrema direita « ativa » se manifestou mais essas últimas semanas com o ataque por uns fascistas (fafs) a um grupo maoísta durante uma manifestação, com a presença da rede de televisão Soral [13] e a proliferação de pixações antissemitas nas ruas. De fato, podemos notar que no início, os Coletes Amarelos pareciam bastante incômodos quando os fachos eram expulsos fisicamente das manifestações, sempre com o argumento de que “nada serve sermos radicais” e que isso somente ia dividir o movimento. Em relação a isso, começaram a mover as coisas quando os maoístas foram atacados por fachos que faziam saudações nazistas. É um pouco confortante ver-se materializar limites a um princípio democrático que quer ser mais forte que tudo, mesmo que isso seja insuficiente e que nos gostaria ver aparecer outras linhas ou perspectivas mais claras politicamente. É esse elemento que nos dá um pouco de medo com esse movimento, o pouco de perspectiva política com exceção do: “Macron demissão”. Tudo parece se centrar ao redor de práticas comuns e do medo da divisão. Vemos também que cada vez são menos rotatórias ocupadas e muitos Coletes Amarelos começam a se desencorajar dentro de algumas comissões. Mais geralmente, a esquerda sindicalista parece andar atrás com suas tentativas um pouco falhadas de greves gerais e tentativas de fazer presença durante as assembleias gerais dos Coletes Amarelos.

 

A: Em relação às diferentes tentativas de recuperação do movimento, até agora, falharam todas e foi uma beleza! A meia-dúzia de Coletes Amarelos autoproclamadas lideranças do movimento e que, para alguns tentam criar uma lista para as eleições europeias, receberam todos ameaças de morte, assim que muitos já renunciaram. Essas ameaças não se resumiram a simples cartas anônimas, e da mesma maneira que as pessoas atacaram regularmente as moradias pessoais dos eleitos (tentativa de incêndio na casa de Richard Ferrand, presidente da assembleia; carro pessoal de Johanna Roland, prefeita de Nantes queimado na frente do seu domicilio; numerosas sedes de partidos políticos atacadas…) a mensagem é clara para qualquer um que tentaria falar no lugar dos outros. A imensa maioria de ataques, de incêndios, de sabotagens que tiveram lugar sem se enfraquecer desde inicios de dezembro são realizados por Coletes Amarelos puros e duros. A exceção do incêndio de France BleuIsère em Grenoble [sede de uma rádio] em janeiro que foi reivindicado por companheirxs anarquistas, a imensa maioria desses atos foi levada a cabo por senhores e senhoras que podem ser qualquer um/a. O que explica então a facilidade pelos atores da repressão para encontrar os autores quase sistematicamente (pessoas sem luvas, sem toca, que mexem no smartphone ao mesmo tempo em que quebram as coisas, e como já falei, com confissão fácil). Eu consideraria então vãs todas as tentativas de recuperação do movimento, de onde seja que elas vêm. E se é verdade que a extrema direita é cada vez menos presente, graças também à uma presença física de grupos antifascistas que os expulsam e caçam literalmente, na maioria das manifestações, os cortejos parisienses se parecem cada vez mais ao leque social da extrema esquerda tradicional. E falando em recuperação diria que a única vitória da esquerda cidadã-pacifista tem a ver; não no terreno das ideias, porque o movimento dos Coletes Amarelos tem isso de revolucionário: bane a ideia mesma de qualquer cumplicidade com qualquer ator capitalista; mas no fato de ter imposto aos cortejos parisienses dos sábados tradicionais, caminhos novamente declarados e então afastados dos bairros ricos e enquadrados à “alemã” por centenas de policiais em cada vereda.

Desde início de fevereiro as forças contrarrevolucionarias trabalham a toda velocidade. Tendo observado a impossibilidade atual de enquadrar o movimento recuperando-o, o poder escolheu a repressão dura. Nunca vimos isso, nem sequer em 1968 dizem os mais antigos. Os números aumentam cada dia mais, mas em resumo: 300 feridos graves; 22 pessoas com olho arrancado (cuja metade é claramente pacifista!); 5 mãos arrancadas (com essas famosas granadas GLIF4 que contêm TNT; 6000 detenções desde novembro, 5000 custodias, pelo menos 2000 condenações (sabendo que muitos julgamentos ainda não aconteceram), 250 penas de prisão (e muitas vezes somente pelo fato de levar óculos de mergulho). Temos que adicionar a isso a nova lei « anti-vândalos » [anti-casseurs] que estava em trâmite há 10 anos mas que nenhum governo ousava colocar em prática. Isso porque prevê e permite a detenção preventiva de qualquer pessoa suspeita pelo Estado de, talvez algum dia, inch´allah… cometer violências. É realmente MinorityReport no país de Voltaire. E com a finalidade de secundar seu braço armado de uma luva de veludo, a última invenção do governo não é menos ousada. Enquanto durante a manifestação do dia 16 de fevereiro Alain Finkelraut (um intelectual muito fascista, e, por outro lado, judeu) foi expulso por apenas 5 pessoas aos gritos de “sionista fedido”, o Estado aproveitou para acusar o movimento de ser antissemita, o que comprova, segundo ele, que o movimento está sendo recuperado por uma extrema esquerda, também supostamente antissemita. Durante o mês de dezembro, os Coletes Amarelos eram todos tolos infiltrados por nazis, hoje são antissemitas convertidos à extrema esquerda, amanhã talvez seremos vilões agentes russos ao serviço dos Smurfs ?! Em fim, e, é menos engraçado, Macron em pessoa se declarou a favor da inscrição da lei do anti-sionismo como parte integrante do antissemitismo, fala por si só…

 

Notas:

[1] RIC: Referendum de Iniciativa Cidadã foi uma proposta de “radicalização” da democracia lançada pelo partido da França Insubmissa (FI) que propõe que qualquer cidadã possa propor uma lei e que essa lei possa ser aprovada ou não através de um referendum. Mais que revolucionaria, essa proposta segue um caminho reformista e apaziguador, se bem propõe expandir o princípio democrático não questiona a própria estrutura na qual o jogo democrático está inscrito. A finalidade desse tipo de iniciativa é a pacificação da revolta e o seu controle pelos dirigentes sindicais e partidários da esquerda tradicional.

[2] https://www.liberation.fr/france/2018/12/14/qui-est-a-l-origine-du-mouvement-sont-ils-encore-actifs_1698002

[3] Antigamente Sociedade Geral das Empresas, Vinci é um grupo empresarial presente em 16 países. Foi também o responsável por montar o projeto do aeroporto “Grand- Ouest”, tentativa falhada graças à luta dos Zadistas de NotreDamedes Landes. Entre outros, Vinci encontrou-se também com protestos na Rússia da construção da estrada de Moscou até São Petersburgo que passa pela floresta de Khimki já que mais de 75% da população se opõe ao projeto.

[4] Jospin foi primeiro Ministro do país de 1997 a 2002 durante o governo do presidente de direita J.Chirac. Foi primeiro secretário do Partido Socialista de 1981 a 1988 e de 1995 a 1997.

[5] https://www.latribune.fr/economie/france/gilets-jaunes-macron-annule-la-hausse-des-taxes-sur-les-carburants-800017.html

[6] O movimento contra o CPE foi um movimento massivo contra a precarização do trabalho

[7] No dia 2 de fevereiro de 2017, Theodore Luhaka, “Théo”, um jovem de 22 anos sofreu uma abordagem policial nos subúrbios de Paris. O jovem que rechaçou se submeter à polícia foi violentamente golpeado e estuprado por um policial e seu cassetete. Esse “acontecimento” além de gerar revolta na sociedade mostrou a verdadeira cara da polícia.

[8] Esse movimento se desenvolve na Bretanha em reação ao preço elevado dos impostos sobre os veículos de mercadorias em 2013 e 2014.

[9] Nouveau Parti Anticapitaliste (Novo Partido Anticapitalista), partido de extrema esquerda revolucionaria, de tendência trotskista.

[10] https://paris-luttes.info/manifs-sauvages-et-emeute-11644

[11]https://www.arretsurimages.net/emissions/arret-sur-images/gilets-jaunes-les-bavures-policieres-cest-lomerta-absolue

[12]https://desarmons.net/index.php/2019/01/04/recensement-provisoire-des-blesses-graves-des-manifestations-du-mois-de-decembre-2018/

[13] Alain Soral declara-se como “sociólogo popular” e marxista. Porém, ele é conhecido por manifestar ideias antissemitas muito profundas além de apoiar desde 2006 a Frente Nacional de Jean-Marie e Marine Le Pen. Foi expulso da academia de Science Po da qual fazia parte até então. Ultimamente, manifestou-se notadamente desde um canal no YouTube que em várias ocasiões acaba sendo clausurado por difundir “mensagens de ódio.”

 

(entrevistas e texto enviados ao Portal Anarquista por um colectivo anarquista brasileiro para publicação)

Texto e audio da intervenção inicial de Carlos Taibo na apresentação da tradução portuguesa do seu livro “Colapso”, em Montemor-o-Novo

Março 25, 2019

 

 

O colapso terminal do capitalismo e o anarquismo como fermento da sociedade do futuro

 

Carlos Taibo (*) 

 

O debate sobre o Colapso, desde o meu ponto de vista, não tem nenhuma presença nos media e também não tem presença no discurso dos nossos dirigentes políticos, nem sequer naqueles, teoricamente, mais abertos e alternativos. Esse debate, porém, está presente na literatura e no cinema, mas na minha opinião, essa presença tem mais a ver com um código de ócio e de lazer do que com a vontade de articular, a esse respeito, um discurso genuinamente crítico.

 

Antes do mais, devo deixar claro que não estou em condições de afirmar, sem margem para dúvidas, que se vai produzir um colapso geral do sistema que padecemos. O meu argumento é mais prudente. Afirma, sem mais, que esse colapso é provável. Ou, se tiver que pôr mais ênfase, direi que é muito provável. Parece-me decisivo lembrar que muitos prognósticos, que antecipavam o aparecimento de manifestações negativas e as vinculavam ao ano 2100, começam a antecipar no tempo essas manifestações. Fala-se agora de 2060, de 2040 ou de 2020, ou seja, praticamente no virar da esquina.

 

O que é o Colapso?

 

Para perceber o conceito de colapso vou isolar quatro dos elementos que o constituem e que, espero, sejam suficientes para se perceber qual o seu significado.

 

O primeiro desses elementos é o carácter irreversível do processo correspondente, que é o que o distingue duma simples crise. Quando falamos duma crise entendemos que é possível regressar ao cenário anterior à crise. Quando falamos do colapso esta possibilidade não é válida.

 

Um segundo elemento importante desenvolve-se na forma de uma pergunta: O colapso é um processo ou, pelo contrário, é um momento?

 

Numa primeira aproximação pareceria evidente que se trata de um processo. Se estamos a falar das consequências das mudanças climáticas sabemos que uma delas, fundamental, é uma subida paulatina, processual, da temperatura média do planeta. Se nos referimos aos efeitos do esgotamento do petróleo sabemos de novo que esse esgotamento é processual, paulatino. Mas devo lembrar-vos que a lógica do capitalismo contemporâneo é, muito amiúde, a lógica das bolhas financeiras, especulativas e imobiliárias. Por isso, parece-me muito razoável afirmar que o colapso numa primeira aproximação é, certamente, um processo que pode conduzir, no entanto, a um momento preciso a partir do qual esse processo se torna irreversível.

 

O terceiro elemento da definição relaciona-se com o conceito de complexidade. Não sei se alguma das pessoas que aqui estão leu o livro de Jared Diamond intitulado Colapso, em que estuda uma dúzia de colapsos registados no passado, o império romano, o império asteca, o império bizantino, a ilha de Páscoa, etc., e em todos esses processos identifica a complexidade como um factor importantíssimo. A tese principal do livro refere que quando as sociedade se vão tornando mais complexas para resolverem muitos dos seus problemas precisam de quantidades crescentes de energia, num momento em que, de maneira significativa, a energia falta. Acho que este argumento percorre praticamente todas as teses que vou utilizar mais adiante.

 

Resgato um quarto e último elemento. A presença de códigos valorativos, tanto mais delicados quanto menos conscientes estamos de que eles aí estão, sobretudo em dois âmbitos diferentes. O primeiro desses âmbitos obriga a salientar que quando escrevi o capítulo do livro sobre os colapsos registados no passado descobri com surpresa que a maioria dos historiadores que se interessavam por esses colapsos atribuíam uma condição negativa a três processos que, a meu ver, são fundamentalmente positivos.  A desierarquização, a rerularização e os ganhos em matéria de autonomia local. Repito: estes três processos, que do meu ponto de vista ilustram que o colapso também vai consequências positivas,  são  descritos unanimemente como negativos pelos historiadores do sistema.

 

Há um segundo âmbito nestes códigos valorativos, como já disse. Enquanto escrevia o livro amiúde me apareceu a ideia de que o conceito de colapso que nós empregamos tem uma certa noção etnocêntrica. Nós compreendemos o que significa a palavra colapso porque damos como certo que ainda não estamos lá e comparamos a realidade presente com o que pode acontecer no futuro. Explicar o que é o colapso a uma criança nascida na Faixa de Gaza parece-me extremamente difícil porque tida a sua vida foi um colapso. Isto é algo que importa salientar porque ilustra a tese de que o colapso já é a realidade para muitos seres humanos e não, como no nosso caso, uma possibilidade futura, mais ou menos importante.

 

As causas do Colapso

 

Qual é a outra observação que vos quero fazer? Temos que nos questionar sobre as causas principais que poderiam explicar o risco de um colapso geral do sistema que padecemos. Vou tentar responder de maneira fundamentalmente pedagógica. Assim, direi que há duas causas principais, acompanhadas de outras, aparentemente menores, que podem acrescentar problemas adicionais.

 

As duas causas principais são, por um lado, as mudanças climáticas e, por outro, o esgotamento das matérias-primas energéticas que hoje utilizamos.  

 

Quanto ao primeiro factor, há um consenso muito forte na comunidade científica internacional no que diz respeito à ideia inevitável de que a temperatura média suba pelo menos dois graus relativamente aos níveis próprios da era pré-industrial. Quando atingirmos esse momento ninguém sabe o que acontece depois, mas em qualquer caso não será nada positivo. Conheceis, também, com certeza, quais são algumas das consequências fundamentais das mudanças climáticas. Um aumento geral das temperaturas, a subida do nível do mar, um progressivo degelo dos pólos, a desaparição de muitas espécies, a desertificação, a desflorestação, a manifestação de problemas graves no desenvolvimento da agricultura e da criação de gado.

 

No que diz respeito ao segundo factor, o esgotamento das matérias-primas energéticas lembro que, segundo uma estimativa, ao não dispormos do petróleo, do gás natural e do carvão, 67 por cento da espécie humana morreria. Antonio Turiel é o principal especialista espanhol no chamado pico do petróleo (pic oil, em inglês). Turiel afirma que o pico conjunto das fontes não renováveis de energia – o petróleo, o gás natural e o carvão – se verificou no ano de 2018 ou, em linguagem mais simples, que a produção, inevitavelmente, está a descer ao mesmo tempo que os preços começam, inevitavelmente, também a subir.

 

Estou disposto a aceitar que, no caso das matérias-primas energéticas, é imaginável uma combinação diferente da que hoje empregamos e que poderia resolver muitos problemas, mas devo salientar que não se está a trabalhar materialmente na introdução dessa nova combinação que exigiria, ela só, transformações radicais na textura das nossas sociedades. Isto é algo que me leva a concluir que, também neste caso, estamos a chegar tarde.

 

Mencionei que há outros factores aparentemente secundários que, porém, poderiam multiplicar as tensões. Esses factores são a crise demográfica, que castiga sobretudo determinadas regiões do planeta; uma situação social muito delicada, materializada no facto de que metade da população mundial tem que viver com menos de dois dólares diários, um cenário que se anuncia como o da reaparição com muita força da fome e dos problemas de acesso à água em regiões inteiras; o reaparecimento de doenças em forma de epidemias e pandemias de difusão mais fácil e rápida; a difusão dos cancros e das doenças cardiovasculares; um cenário indesejável para as mulheres que anuncia uma ratificação das regras próprias da sociedade patriarcal; o efeito multiplicador da crise financeira na forma de cativação e instabilidade, perda de confiança e incerteza; a proliferação de violências várias, sobretudo sob a forma de autênticas guerras de rapina desenvolvidas pelas grandes potências do norte na procura das matérias-primas de que têm falta; por fim, a idolatria que continuam a merecer a tecnologia e o crescimento económico.

 

A sociedade pós-Colapso

 

Mas há uma terceira observação que quero fazer. Tenho que me questionar sobre os traços previsíveis da sociedade pós-colapso. É fácil intuir que responder a esta pergunta exige doses muito notáveis de especulação. Não sabemos se o colapso vai ser fundamentalmente um processo ou um momento. Não conhecemos quais vão ser as suas causas precisas. Também não conhecemos as respostas que vai provocar. Intuimos que se manifestará com traços diferentes nuns e noutros lugares e também desconhecemos o momento do colapso. De todas estas incógnitas só estou interessado a fazer uma referência à última. As pessoas que, segundo o meu ponto de vista, trabalharam a sério sobre o colapso afirmam que este não é para dentro de 100 ou 150 anos, mas que o período crítico que temos que estudar é o que separa os anos entre 2020 e 2050. De novo, devo sublinhar, ao virar da esquina do momento em que estamos.

 

Embora com todas estas cautelas, suponho que uma das maneiras de responder à pergunta relativa aos traços fundamentais da sociedade pós-colapsista identifica em primeiro lugar uma redução dramática da oferta de energia, que terminará com a civilização do automóvel, tal como hoje a conhecemos, e também com o comércio internacional.

 

Um segundo elemento importante assumirá a forma de um golpe muito forte que sofrerão as instâncias que se caracterizam pela centralização e pelo uso intenso de energia e de tecnologia. Em linguagem mais simples, os Estados, as grandes empresas, as forças armadas, que as serão as principais vítimas, considero eu que ainda bem, do colapso de que falo.

 

No âmbito económico as consequências serão uma redução do crescimento, o encerramento massivo de empresas, o desemprego generalizado, a desintegração dos Estados de bem-estar e a subida dos preços de muitos dos preços dos produtos básicos. Na ausência de crescimento o sistema financeiro soçobrará com problemas visíveis para a saúde e a educação, sendo as principais vítimas as de sempre: os idosos, as mulheres, as crianças. O impacto será muito mais forte nas cidades do que no mundo rural, ainda que nem todas as cidades sofram de forma idêntica esse impacto. Estarão em melhor posição as cidades que dispõem de superfícies agrícolas importantes nos seus arredores, que contam com água em abundância , que estão em encruzilhadas de caminhos e que tenham características mais tradicionais ou antigas. O exemplo das cidades de modelo contrário, que já sofreram os efeitos de outros colapsos, é-nos oferecido pela cidade norte-americana de Detroit, antes a Meca da indústria automóvel, que nas duas últimas décadas já entrou em colapso. Ainda que o cenário possa ser manifestamente mais suave no mundo rural, não vale a pena estarmo-nos a enganar, os efeitos de muitas das políticas desenvolvidas nos últimos anos serão evidentes. Estou a falar da má gestão dos solos, da monocultura, da mecanização e da mercantilização crescentes. Enfim, todos vão perder quantitativamente, em termos gerais, embora dependendo dos respectivos processos mais numas regiões do que noutras.

 

Os movimentos pela transição

 

No livro há dois capítulos em que analiso duas respostas diferentes frente ao colapso. Uma a que chamo a dos movimentos pela transição ecossocial e a outra a que decidi identificar como ecofascismo.

 

Se tiver que resumir a proposta dos movimentos pela transição ecossocial identificarei quatro verbos: decrescer, rerularizar, destecnologizar, despatriarcalizar, e um último, descomplexizar, as nossas sociedades.

 

Porquê, em primeiro lugar, decrescer? Se vivemos num planeta com recursos limitados não parece que tenha muito sentido a aspiração a continuar crescendo ilimitadamente. Não sei qual é hoje, exactamente, a pegada ecológica portuguesa, mas parece-me que é 2,3. A pegada ecológica espanhola é de 3.0. Isto significa que para manter as actividades económicas hoje existentes em Espanha precisamos de três vezes o território espanhol. Como é que se resolve este problema? Através de uma pressão inaudita sobre os direitos dos elementos das gerações vindouras, sobre os direitos de muitos dos habitantes dos países do sul e sobre os direitos dos indivíduos das várias espécies com que, em teoria, compartilhamos o planeta.

 

Neste âmbito, a perspectiva de decrescimento afirma que no norte desenvolvido temos, inevitavelmente, que reduzir os níveis de produção e de consumo, mas reclama a introdução de regras muito diferentes das que hoje aplicamos. No que é que estou a pensar?  Na necessidade de recuperar a vida social que fomos desperdiçando, absorvidos como estamos pela lógica da produção, da competitividade e do consumo. O ócio criativo frente às formas de ócio, sempre mercantilizadas, que oferece o sistema de que padecemos. A repartição do trabalho, uma velha reivindicação sindical que infelizmente foi morrendo com o passar do tempo. A necessidade de reduzir as dimensões de muitas das infraestruturas produtivas, administrativas e de transporte que hoje utilizamos. A urgência de recuperar a vida local, num cenário de reaparição de fórmulas de democracia directa e de autogestão. Por fim, no âmbito individual, a sobriedade e a simplicidade voluntárias.

 

O segundo verbo, rerularizar, tem um significado mais fácil de compreender. Muitos dos nossos avós deixaram o mundo rural para passarem a viver nas cidades onde achavam, legitimamente, que o cenário era mais habitável. Hoje assistimos, incipientemente, a um processo de sinal contrário. De qualquer modo, as pessoas que são, mesmo moderadamente, conscientes do risco de um colapso geral do sistema sabem que uma das poucas respostas eficientes que dispomos para esse efeito é a que reivindica recuperar muitos dos elementos da sabedoria popular dos nossos camponeses mais velhos e muitas das práticas quotidianas do mundo rural.

 

Admitirei de bom grado que o terceiro verbo, destecnologizar, acarreta uma certa dimensão provocatória. Se tiver que usar este argumento com uma maior moderação direi que acho que estamos na obrigação de analisar criticamente qual é a natureza de muitas das tecnologias que o sistema nos presenteia porque suspeito que não têm essa natureza emancipadora, libertadora, que amiúde lhes atribuímos.

 

John Zerzan é o principal teórico do anarco-primitivismo. Afirma, de maneira rotunda que todas as tecmologias criadas pelo capitalismo têm por detrás a pegada da divisão do trabalho, da hierarquia e da exploração. É um argumento sério que é preciso ter em consideração. Eu já disse que não vou tão longe, limito-me a reclamar que analisemos criticamente a natureza das tecnologias que o sistema gratuitamente nos oferece.

 

Falei, em quarto lugar, da urgência de despatriarcalizar as nossas sociedades. Daqui a pouco vou defender a construção de espaços autónomos, autogestionados, desmercantilizados e despatriarcalizados. Esses espaços existem já mas, em certos casos, promovem o caminho da autogestão da mercantilização, quando conservam impolutas a maioria das regras do jogo próprias da sociedade patriarcal.

 

Segundo uma estimativa, 70 por cento dos pobres e 78 por cento dos analfabetos existentes no planeta são mulheres. Os dados são muito significativos. Não estamos a falar de 52 por cento de mulheres pobres frente a 48 por cento de homens. Estamos a falar da distância abismal que separa 70 de 30 por cento. Segundo outra estimativa, as mulheres realizam 67 por cento do trabalho e recebem 10 por cento do rendimento. Nestas condições afirmar que os problemas atávicos de marginalização, simbólica e material, das mulheres está em vias de uma feliz resolução consiste em voltar as costas à realidade.

 

Falei, por fim, na urgência de descomplexizar as nossas sociedades. Aceitamos sociedades cada vez mais complexas com uma consequência muito delicada: cada vez somos mais dependentes, cada vez somos menos independentes. O meu amigo Ramón Fernández Durán,  que morreu em Madrid há 8 anos, nos seus dois últimos livros quase póstumos repetiu uam e outra vez uma ideia. Dizia que muitos dos deserdados do planeta, habitantes dos países do sul, estão, paradoxalmente, em melhor posição do que nós para fazer frente ao colapso que se avizinha. Porquê? Vivem em pequenas comunidades humanas, mantiveram uma vida social muito mais rica do que a nossa, preservaram uma relação muito mais fluida com o meio natural e são, paradoxalmente, muito mais independentes.

 

Às vezes pergunto-me sobre o que aconteceria num lugar como este em que vivemos se deixassem de chegar os fornecimentos de petróleo. Tudo isto viria abaixo literalmente da noite para o dia. Se queremos recuperar a nossa independência teremos, inevitavelmente, que aceitar sociedades menos complexas.

 

O perigo do ecofascismo

 

Já disse que o livro inclui outro capítulo que se interessa pelo que decidi chamar ecofascismo. Sei que o termo é moderadamente surpreendente. Estamos acostumados a pensar que o prefixo eco acompanha realidades positivas, ou, pelo menos, realidades neutras. Devo lembrar-vos, porém, que no partido nacional-socialista alemão, o partido de Hitler, actuou um activo grupo de carácter ecologista que defendia o regresso ao mundo rural, que criticava duramente algumas das dimensões mais negativas da urbanização e da industrialização, e que postulava o desenvolvimento de práticas vegetarianas. Tudo isso, naturalmente, a favor de uma raça escolhida, que devia impor regras de jogo sobre os demais.

 

Há uns anos foi traduzido em Espanha um livro dum jornalista alemão chamado Carl Amery, chamado em espanhol “Auschwitz: comienza el siglo XXI?”, cuja tese principal é a de que estaríamos muito errados se concluíssemos que as políticas que os nazis alemães defenderam há 80 anos atrás remetem para um momento histórico singular, conjuntural e, por isso, felizmente, irrepetível. Pelo contrário, Amery convida-nos a estudar detalhadamente essas políticas porque podem reaparecer nos próximos anos, já não defendidas por grupos neonazis, ultra marginais, mas sim preconizadas por alguns dos principais centros de poder político e económico, cada vez mais conscientes da escassez geral que se avizinha e cada vez mais firmemente decididos a manterem em poucas mãos esses recursos escassos.

 

É fácil intuir que no miolo da proposta ecofascista há uma discussão demográfica que assenta na ideia de que sobra gente no planeta, de tal maneira que se trataria, na versão mais suave, de marginalizar os que sobram, e que é o que já fazem. Na versão mais dura, de exterminar quem sobra.

 

Algumas conclusões sobre o que aí vem

 

Vamos à sexta e última observação que quero fazer-vos, em forma de várias conclusões rápidas.

 

A primeira, que assume a forma de uma pergunta: conseguiremos evitar o colapso? Pela minha intuição a resposta é não. O que está ao nosso alcance é mitigar a manifestação de algumas das suas construções mais negativas e, provavelmente, adiar um bocadinho no tempo essa manifestação.

 

Qual é a segunda conclusão?

 

Nos círculos em que me movo a discussão sobre o colapso provoca duas reacções diferentes.

 

A primeira é cruamente realista e afirma que não temos outra possibilidade senão esperar a chegada do momento do colapso, porque esta é a única forma de fazer com que a maioria dos habitantes das nossas sociedades perceba quais são as suas obrigações. Esta perspectiva é muito realista, mas é desmotivadora, porque tem um certo carácter imobilista ou imobilizador e porque parece ignorar que o colapso, por definição, vai ter consequências dramáticas na forma duma multiplicação espectacular dos problemas e, paralelamente, duma redução das nossas possibilidades de os resolver.

 

A segunda das respostas assume um carácter voluntarista, na medida em que dispõe dum apoio social muito limitado. Afirma que temos que sair com urgência do capitalismo e que hoje o que está ao alcance das nossas mãos é abrir espaços autónomos, autogestionados, desmercantilizados e despatriarcalizados. Já antes disse que esses espaços já existem. Estou a pensar no que significam, no cenário espanhol, muitas eco-aldeias,  cooperativas integrais, grupos de consumo, formas de banca ética e social que foram aparecendo ou o movimento de trabalhadores que em regime autogestionário e cooperativo tomaram o controlo de empresas que estavam à beira de fechar.

 

Tenho boa relação pessoal com alguns dos economistas social-democratas espanhóis mais importantes, mas muitas dissensões. Parecem estar convencidos de que a sua tarefa principal consiste em convencerem-me de que é muito importante criarem, por exemplo, um banco público. Eu a esse respeito faço-lhes uma pergunta delicada: quanto tempo temos á nossa frente? Se o prognóstico que antes invoquei de que existe um período crítico que vai de 2020 a 2050 é certo estaríamos na obrigação de modificar rápida e radicalmente a maioria das regras de jogo próprias das nossas sociedades.

 

Esses espaços autónomos, que defendo, desde o meu ponto de vista, só terão um significado pleno se forem capazes de se federarem entre si e fizerem aumentar a sua capacidade de confrontação com o capital e com o Estado. Desde logo, é preciso sublinhar, que há uma grande divisão de opiniões no que diz respeito ao que deve ser a sua função principal. Alguns respondem dizendo que a sua tarefa principal consiste em evitar o risco do colapso. Outros  começamos a responder dizendo que a sua tarefa principal consiste em funcionar como escolas que nos permitam aprender o que devemos fazer depois do colapso.

 

Como terceira conclusão, acho que uma das maiores habilidades do sistema de que padecemos é a de conseguir evitar que façamos as perguntas importantes. Proponho um exemplo do que quero dizer. O discurso dominante afirma que temos que procurar novas fontes de energia que permitam manter o que se alcançou até agora e talvez acrescentá-lo. Qual é a pergunta que conseguem que não façamos? E é a seguinte: interessa-nos realmente manter isto ou teríamos muitas vantagens se prescindíssemos de muitos dos elementos que compõem hoje o sistema em que vivemos? Imaginem que amanhã o presidente da Federação Russa, o senhor Putin, anunciava que o seu país tinha descoberto nas águas do oceano glaciar ártico um gigantesco jazigo de hidrocarbonetos que permitia que o consumo planetário se mantinha durante mais uma década de acordo com os níveis actuais de consumo. Alguém pensa a sério que aproveitariam esses 10 anos para repensar criticamente qual é a natureza das nossas sociedades? Dou como certo que dentro de 10 anos teríamos que formular perguntas como as que agora estou a formular.

 

Qual é a quarta e penúltima observação, à maneira de conclusão, que quero fazer. Desde o meu ponto de vista as forças políticas emergentes em Espanha e estou a pensar no caso do Podemos, e as não tão emergentes, propõem discussões interessantes relativamente  ao regime de que padecemos, mas nada ou muito pouco dizem da natureza do sistema que está por detrás desse regime. Em que estou a pensar quando falo do regime? Na discussão sobre a corrupção, o bipartidarismo, no caso espanhol a própria discussão sobre a república e a monarquia. Mas em que penso quando estou a falar no sistema, em todas aquelas matérias que não interessam a todas as pessoas que opinam nas rádios ou nas televisões? No capitalismo, no trabalho assalariado, na mercadoria, na alienação, na exploração, na sociedade patriarcal, nas guerras imperiais, na crise ecológica, no próprio colapso.

 

A partir desta perspectiva não posso fazer outra coisa senão chamar a atenção sobre o meu cepticismo ante a possibilidade de que a resposta a tantos problemas proceda das instituições. Estas, infelizmente, estão marcadas pelos interesses de poderosas corporações económico-financeiras. No melhor dos casos abraçam horizontes próprios dum capitalismo verde que considera a ecologia como uma fonte adicional de lucros e desenvolvem políticas sempre de curto prazo estritamente alinhadas com as aberrações da lógica eleitoral.

 

A quinta e última das minhas conclusões prende-se com o seguinte. Quando escrevi o capítulo do livro relativo aos movimentos pela transição ecossocial imediatamente percebi que a maioria dos autores que trabalhavam sobre esta matéria viviam duma ideia libertária, fosse de maneira consciente ou inconsciente. No fundo, o que estavam a defender como alternativa era a auto-organização das sociedades, desde baixo, a partir da autogestão, da democracia directa e do apoio-mútuo.

 

Há bastantes anos, estando um dia em companhia de dois colegas professores de ciência política, a determinada altura começaram a falar sobre o programa duma matéria intitulada Ideologias Políticas Contemporâneas. Um deles afirmou que não se devia incluir o anarquismo nesse programa porque não era uma ideologia política contemporânea. Eu, que até aí estive calado, preferi intervir para lhe dar razão e disse-lhe: Tens toda a razão. O anarquismo não é uma ideologia política contemporânea. É uma ideologia política do futuro. Ou, pelos menos, é-o aos olhos daqueles que pensamos que o capitalismo vai, de uma maneira muito clara, em direcção ao colapso terminal, o que nos obriga a considerar seriamente a actualidade de um projecto que reivindica a autogestão, a democracia directa e o apoio mútuo.

 

Obrigado por me terem escutado.

 

(Texto da alocução inicial de Carlos Taibo na apresentação da tradução portuguesa do seu livro “ Colapso”, editado pela Letra Livre e pelo jornal Mapa, na tarde de 24 de Março de 2019, nas Oficinas do Convento em Montemor-o-Novo. O texto foi retirado da gravação, com ligeiras alterações devidas à transformação da linguagem coloquial em linguagem escrita).

 

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Carlos Taibo em Portugal: o colapso e a sociedade que aí vem animaram debates no Porto, Lisboa e Montemor-o-Novo

Março 24, 2019

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Carlos Taibo encerrou este domingo em Montemor-o-Novo o seu périplo por várias localidades portuguesas, que o levou ao Porto, Lisboa (2 sessões) e ao Alentejo para a apresentação da tradução do seu livro "Colapso - capitalismo terminal, transição ecossocial, ecofascismo", editado pela Letra Livre e pelo jornal Mapa.

 

Durante estes quatro dias, Carlos Taibo manteve contacto directo com largas dezenas de pessoas que estiveram presentes nas diversas sessões (Gato Vadio, RDA49, Universidade Nova, Oficinas do Convento), todas elas animadas por uma assistência numerosa e interveniente.

 

Em Montemor-o-Novo a sala polivalente das Oficinas do Convento recebeu cerca de três dezenas de pessoas que ouviram Carlos Taibo explicar que o colapso que se avizinha (e do qual disse não ter uma certeza absoluta, mas existir uma probablidade elevada de ele ser inevitável), derivado da necessidade constante de mais energia e do esgotamento das reservas naturais, poderia ser também uma oportunidade para a construção de uma sociedade que não esteja dependente do lucro, mas da satisfação das necessidades básicas do ser humano (materiais, imateriais, cognitivas e sensoriais...) e que esteja assente em premissas como a descomplexização, a destecnologização, a reruralização, a despatriarcalização e a autogestão.

 

Considerando que o capitalismo hoje é global, a superação do colapso - ou o momento que se lhe seguirá - terá que apontar no sentido de uma sociedade não hierárquica, não autoritária e não centralizada, assente na transição ecossocial e não no modelo oposto, centralizado e hierárquico, que os movimentos ecológicos de raíz capitalista propõem e que representam um perigo real de ecofascismo, uma vez que, conscientes da exiguidade de recursos que existe no planeta, defendem a sua utilização por uma minoria de eleitos, excluindo deles a maioria da população, que seria marginalizada ou mesmo eliminada.

 

No entanto estes debates foram apenas o início. O livro está aí cheio de informação, de ideias, de propostas, numa excelente tradução, "como já não é comum", de Pedro Morais, como salientou o próprio Carlos Taibo.

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CARLOS TAIBO 
Professor de Ciência Política na Universidade Autónoma de Madrid, é um dos mais activos autores libertários da actualidade. Entre os seus interesses, aparecem destacadas as questões do decrescimento e a análise do colapso social, económico e ambiental. O colapso não é um acontecimento do futuro mas antes um processo já plenamente instalado nas nossas sociedades industriais. Taibo propõe-se explicar as causas e os processos que apontam hoje para um colapso global e os dilemas, e alternativas, que se colocam.  
 
«Colapso. Capitalismo terminal, Transição ecossocial, Ecofascismo».
Carlos Taibo
Letra Livre / Mapa
Lisboa, 2019.
241pp. 12,00 €
 
 
 

Nos 100 anos de “A Batalha”, um documento a recordar: 'Às armas, portanto!'

Março 23, 2019

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PROCLAMAÇÃO AO OPERARIADO DE LISBOA

     Mais uma vez no desenrolar dos acontecimentos políticos para os quais em nada contribuímos, se põem em jogo macabro a sorte dos operários, das vítimas seculares de todas as suas tranquibérnias.

     Apesar, porém, da situação especial e do alheamento que devemos manter ante o escabujar da demência burgueza, neste agonizar de lutas sangrentas provocadas pela sêde de mando, não podemos, contudo, na presente emergência, conservarmo-nos impassíveis, em apertada obediência aos princípios por que nos norteamos. É que a fatalidade dos acontecimentos adregados no meio em que sômos forçados a viver, arrastam-nos para o fragôr da contenda, se não quizermos perder as débeis liberdades que fruímos.

     Já não se trata só de defender políticos: é preciso defender camaradas nossos, é preciso manifestarmos a todos os dominantes que a classe trabalhadora existe como uma força organizada, com quem se deve contar, e que, apesar de tudo, ainda mais uma vez está disposta a combater pela República, não pelas garantias que lhe têm dado, mas pelo princípio de liberdade que ela encarna e que os trabalhadores antevêem no horizonte amplo das suas aspirações.

     É certo, indubitável e tristemente certo, que a acção dos operários por significativa e valiosa que seja, é esquecida ao outro dia da vitória quando as corujas se começam a apropinquar da célebre lâmpada de azeite; mas há um princípio sagrado a defender, princípio a que todo o operário consciente imola os seus justificados ressentimentos: é o princípio da liberdade.

     Ele está prestes a sossobrar. Os próceres de Ditadura sufocaram a voz da Imprensa, derrogaram o princípio da greve, restringiram e burocratizaram o direito de reunião e avolumaram, pelos seus incongruentes actos de administração, a crise do trabalho.

     Amanhã, quando vencedores, senhores absolutos dos destinos deste pobre povo, repetenados na sua empáfia, agindo descricionariamente, não terão pêjo em reduzir todos os trabalhadores à deprimente condição de sudras e deportar para as plagas africanas os que não se prosternem ante os seus suzeranos caprichos.

 

     CAMARADA:

 

     Chegou o momento de te decidires ! Estão em perigo as tuas poucas liberdades e o teu pão. Dum lado, a tôrva reacção, com todo o cortejo de expoliações e velharias, empunhando o ceptro e a corôa ; do outro, ainda que mal representada, a liberdade na efígie da República. Contudo, é preferível decidirmo-nos por esta. Então, ÀS ARMAS !

     Que o sacrifício do nosso sangue em revolta sagre as ideias que nos animam e faça arripiar caminho àqueles que dele se têm servido em conjunturas idênticas.

     A nossa liberdade tem que ser conquistada com o nosso esforço. Reivindiquemos com a nossa acção uma parte dessa liberdade !

     Que nenhum operário deixe de cumprir o seu dever !

     ÀS ARMAS, POIS !

     O encerramento do nosso órgão, A Batalha, as prisões em massa levadas a efeito por um governo despótico, devem ser incentivo suficiente para que todos os operários abandonem o trabalho e acorram aos pontos que oportunamente lhes serão indicados para agirem em defesa da liberdade.

     A partir de hoje, a Câmara Sindical de Trabalho e o Comité Pró-Unidade declaram a greve geral revolucionária.

     Cumprindo com esta deliberação o seu dever, esperam que todos os operários saibam cumprir o seu.

     ÀS ARMAS, PORTANTO !

 

A Câmara Sindical de Trabalho          

O "Comité" Pró-Unidade          

 

     Em virtude de se encontrarem seladas as sedes das centrais operárias de Lisboa, esta proclamação, não pode, por este facto, levar o respectivo label confederal.


__________________________________

 

Este apelo das centrais operárias de Lisboa à greve geral revolucionária e à insurreição armada contra a ditadura fascista não está datado, mas é seguramente de 5 ou 6 de Fevereiro de 1927, pois A Batalha e a CGT foram assaltadas pela polícia na noite de 5, sendo presos todos quantos lá se encontravam, e, em Lisboa, a tentativa revolucionária deu-se no dia 7.

Sobre a revolta de Fevereiro de 1927 veja-se nomeadamente:

http://www.jornalmapa.pt/2014/02/28/a-revolta-de-fevereiro-de-1927/

por: angelo barreto

Os 100 anos d'A Batalha: que pode um jornal anarquista?

Março 22, 2019

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Nº 283 - Janeiro-Fevereiro

* Que pode um jornal anarquista?

* Nos 100 anos de A Batalha

* História de bolso de A Batalha

* As Batalhas do passado e as do presente
[com testemunhos de M. Ricardo de Sousa, João Freire, António Cândido Franco, Mário Rui, Mário Cruz, José Maria Carvalho Ferreira, Paulo de Oliveira e René Berthier]

* A liberdade passa por aqui
[entrevista com o Centro de Cultura Libertária]

Dia 1 de fevereiro, um dia antifascista
[J. Miguel]

* Comentário sobre a cor amarela
[Pimprenelle]

* Abanar o capacete
[Oriano]

* Prefácio a Escrito(s) – a – vermelho: antologia de Voltairine de Cleyre (Barricada de Livros, 2019)

* Poesia de Beatriz de Almeida Rodrigues, Paulo da Costa Domingos e Jean-Marie Kerwich (versões de Emanuel Cameira)

* À lupa
[recensões a Albert Fish: ao vivo em Faro, Batcabelo, Breve y Somera Historia del Anarquismo, Scrap Metal Dealer + Zip-A-Dee-Doo-Dah, Freaker UNLTD #6, Godspunk, vol. 19, Hipsters, A Ideia #84-86, Insert coin, Kuti #50, L'Internationale Modique, Nódoa Negra, Pimenta no cu dos outros para mim é refresco, Not Dead Yet (2011-2018), Radical Rest, Rock Bottom IV, Squish]

* Fauxthentic
[Walt Thisney]

* Centro Anarquista Português de Artes Modestas
[Marcos Farrajota]

* 100 anos depois e é isto
[Colectivo da Estrela Decadente: Xavier Almeida e Gonçalo Duarte]

* Separadores por Simão Simões

...e ainda um cartaz para celebrar o centenário do jornal!

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Ilustrado por
André Pereira, Cecília Silveira, Dois Vês, Gonçalo Duarte e João Carola


A Batalha está à venda na Tortuga, Letra Livre, A Banca 31, Barata, Linha de Sombra, RDA69, Sirigaita, Snob, Tigre de Papel, Zaratan - Arte Contemporânea, nos quiosques junto ao Largo do Rato, na Rua Alexandre Herculano, na Rua Camilo Castelo Branco e no Largo do Chiado (Lisboa), no Gato Vadio e na Utopia (Porto), na Uni Verso (Setúbal) e na Fonte de Letras (Évora).

 

As condições de assinatura de A Batalha são as seguintes:
Continente | 6 nos: 6,98€ / 12 nos: 12,97€
Ilhas, via aérea | 6 nos: 7,98€ / 12 nos: 15,46€
Ilhas, via económica | 6 nos: 6,98€ / 12 nos: 12,97€
Europa | 6 nos: 11,97€ / 12 nos: 22,45€
Extra-Europa, via aérea | 6 nos: 15,56€ / 12 nos: 27,93€
Extra-Europa, via económica | 6 nos: 11,97€ / 12 nos: 22,45€

O pagamento poderá ser efectuado para o NIB do CEL:
0033 0000 0001 0595 5845 9.

jornalabatalha@gmail.com

Antiga sede d' "A Batalha" vai ter lápide alusiva ao centenário do jornal anarco-sindicalista e da CGT

Março 22, 2019

cgt.jpg

 

Desde sempre o anarquismo viveu nos locais de trabalho, mas também no centro das cidades, onde se localizavam os teatros, as salas, os espaços públicos onde eram realizados os seus comícios e actividades, tal como era aí que se situavam grande parte das sedes dos seus sindicatos.

 

Temos reivindicado que nos edificios mais carismáticos dessa actividade devem ser colocadas placas assinalando de forma correcta esta história passada cheia de ensinamentos para o futuro.

 

Agora, no centenário de A Batalha, a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou uma resolução em que se prevê a colocação de uma lápide no edificio da Calçada do Combro onde funcionou a redacção de A Batalha, até ao seu encerramento pelo regime fascista em 1927.

 

É uma decisão que saudamos, embora provinda de um organismo de carácter político/administrativo, e que esperamos que seja posto rapidamente em pratica. 

 

Mas, e tendo em vista a necessidade de dar centralidade à acção anarquista, teríamos visto ainda com melhores olhos a cedência, em simultâneo, por parte da Câmara (como tem feito a muitas entidades e associações) de instalações condignas para "A Batalha" no centro da cidade e não numa cave dos Olivais, onde actualmente está instalada.

 

Mas fiquemos com a decisão tomada na reunião da AML de 12 de Fevereiro, aprovada por todos os grupos parlamentares, à excepção dos do CDS e MPT, que se abstiveram:

 

"Ao

Jornal “A Batalha”

A Assembleia Municipal de Lisboa, na sua sessão realizada no dia 12 de fevereiro de 2019, deliberou e aprovou o documento que abaixo se indica.

Para que o mesmo possa ser consultado na íntegra deverá aceder ao sitio da AML, no endereço abaixo indicado.

Proposta nº 003/DM IND Rui Costa – “Evocação dos 100 anos do jornal “A Batalha” e os 100 anos da Confederação Geral do Trabalho”(DM IND Rui Costa)

Aprovada por Maioria

(Ausência de um Deputado (a) Municipal Independente da Sala do Plenário)

Teor da Deliberação:

A Assembleia deliberou:

“1 – Evocar a memória da resistência anarco-sindicalista à Ditadura Militar e ao Estado Novo e de todos os que a integraram.

2 – Saudar o jornal “A Batalha” pelo seu centenário.

3 – Recomendar à Câmara Municipal de Lisboa a colocação de uma placa evocativa na fachada do Palácio Marim-Olhão, gravada em aço e com o texto a vermelho e negro (cores do anarco-sindicalismo) com a seguinte inscrição:

“É n’A Batalha onde se pode ter a noção das duas grandes coisas que eu amo na vida, o Futuro e a Liberdade.”

Ferreira de Castro

Neste edifício funcionou durante a I República o diário operário A Batalha, a Confederação Geral do Trabalho e as Juventudes Sindicalistas sendo as suas instalações assaltadas pelos esbirros da ditadura em 1927.

1919-2019, centenário de fundação do jornal anarco-sindicalista A Batalha e da Confederação Geral do Trabalho.”

 

aqui: https://www.am-lisboa.pt/301000/1/011415,000568/index.htm

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