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Vermelho e negro

Espaço de informação alternativa e libertária on-line. Actualizado diariamente com informações de vários colectivos anti-autoritários portugueses, brasileiros e de outros países.

Texto e audio da intervenção inicial de Carlos Taibo na apresentação da tradução portuguesa do seu livro “Colapso”, em Montemor-o-Novo

Março 25, 2019

 

 

O colapso terminal do capitalismo e o anarquismo como fermento da sociedade do futuro

 

Carlos Taibo (*) 

 

O debate sobre o Colapso, desde o meu ponto de vista, não tem nenhuma presença nos media e também não tem presença no discurso dos nossos dirigentes políticos, nem sequer naqueles, teoricamente, mais abertos e alternativos. Esse debate, porém, está presente na literatura e no cinema, mas na minha opinião, essa presença tem mais a ver com um código de ócio e de lazer do que com a vontade de articular, a esse respeito, um discurso genuinamente crítico.

 

Antes do mais, devo deixar claro que não estou em condições de afirmar, sem margem para dúvidas, que se vai produzir um colapso geral do sistema que padecemos. O meu argumento é mais prudente. Afirma, sem mais, que esse colapso é provável. Ou, se tiver que pôr mais ênfase, direi que é muito provável. Parece-me decisivo lembrar que muitos prognósticos, que antecipavam o aparecimento de manifestações negativas e as vinculavam ao ano 2100, começam a antecipar no tempo essas manifestações. Fala-se agora de 2060, de 2040 ou de 2020, ou seja, praticamente no virar da esquina.

 

O que é o Colapso?

 

Para perceber o conceito de colapso vou isolar quatro dos elementos que o constituem e que, espero, sejam suficientes para se perceber qual o seu significado.

 

O primeiro desses elementos é o carácter irreversível do processo correspondente, que é o que o distingue duma simples crise. Quando falamos duma crise entendemos que é possível regressar ao cenário anterior à crise. Quando falamos do colapso esta possibilidade não é válida.

 

Um segundo elemento importante desenvolve-se na forma de uma pergunta: O colapso é um processo ou, pelo contrário, é um momento?

 

Numa primeira aproximação pareceria evidente que se trata de um processo. Se estamos a falar das consequências das mudanças climáticas sabemos que uma delas, fundamental, é uma subida paulatina, processual, da temperatura média do planeta. Se nos referimos aos efeitos do esgotamento do petróleo sabemos de novo que esse esgotamento é processual, paulatino. Mas devo lembrar-vos que a lógica do capitalismo contemporâneo é, muito amiúde, a lógica das bolhas financeiras, especulativas e imobiliárias. Por isso, parece-me muito razoável afirmar que o colapso numa primeira aproximação é, certamente, um processo que pode conduzir, no entanto, a um momento preciso a partir do qual esse processo se torna irreversível.

 

O terceiro elemento da definição relaciona-se com o conceito de complexidade. Não sei se alguma das pessoas que aqui estão leu o livro de Jared Diamond intitulado Colapso, em que estuda uma dúzia de colapsos registados no passado, o império romano, o império asteca, o império bizantino, a ilha de Páscoa, etc., e em todos esses processos identifica a complexidade como um factor importantíssimo. A tese principal do livro refere que quando as sociedade se vão tornando mais complexas para resolverem muitos dos seus problemas precisam de quantidades crescentes de energia, num momento em que, de maneira significativa, a energia falta. Acho que este argumento percorre praticamente todas as teses que vou utilizar mais adiante.

 

Resgato um quarto e último elemento. A presença de códigos valorativos, tanto mais delicados quanto menos conscientes estamos de que eles aí estão, sobretudo em dois âmbitos diferentes. O primeiro desses âmbitos obriga a salientar que quando escrevi o capítulo do livro sobre os colapsos registados no passado descobri com surpresa que a maioria dos historiadores que se interessavam por esses colapsos atribuíam uma condição negativa a três processos que, a meu ver, são fundamentalmente positivos.  A desierarquização, a rerularização e os ganhos em matéria de autonomia local. Repito: estes três processos, que do meu ponto de vista ilustram que o colapso também vai consequências positivas,  são  descritos unanimemente como negativos pelos historiadores do sistema.

 

Há um segundo âmbito nestes códigos valorativos, como já disse. Enquanto escrevia o livro amiúde me apareceu a ideia de que o conceito de colapso que nós empregamos tem uma certa noção etnocêntrica. Nós compreendemos o que significa a palavra colapso porque damos como certo que ainda não estamos lá e comparamos a realidade presente com o que pode acontecer no futuro. Explicar o que é o colapso a uma criança nascida na Faixa de Gaza parece-me extremamente difícil porque tida a sua vida foi um colapso. Isto é algo que importa salientar porque ilustra a tese de que o colapso já é a realidade para muitos seres humanos e não, como no nosso caso, uma possibilidade futura, mais ou menos importante.

 

As causas do Colapso

 

Qual é a outra observação que vos quero fazer? Temos que nos questionar sobre as causas principais que poderiam explicar o risco de um colapso geral do sistema que padecemos. Vou tentar responder de maneira fundamentalmente pedagógica. Assim, direi que há duas causas principais, acompanhadas de outras, aparentemente menores, que podem acrescentar problemas adicionais.

 

As duas causas principais são, por um lado, as mudanças climáticas e, por outro, o esgotamento das matérias-primas energéticas que hoje utilizamos.  

 

Quanto ao primeiro factor, há um consenso muito forte na comunidade científica internacional no que diz respeito à ideia inevitável de que a temperatura média suba pelo menos dois graus relativamente aos níveis próprios da era pré-industrial. Quando atingirmos esse momento ninguém sabe o que acontece depois, mas em qualquer caso não será nada positivo. Conheceis, também, com certeza, quais são algumas das consequências fundamentais das mudanças climáticas. Um aumento geral das temperaturas, a subida do nível do mar, um progressivo degelo dos pólos, a desaparição de muitas espécies, a desertificação, a desflorestação, a manifestação de problemas graves no desenvolvimento da agricultura e da criação de gado.

 

No que diz respeito ao segundo factor, o esgotamento das matérias-primas energéticas lembro que, segundo uma estimativa, ao não dispormos do petróleo, do gás natural e do carvão, 67 por cento da espécie humana morreria. Antonio Turiel é o principal especialista espanhol no chamado pico do petróleo (pic oil, em inglês). Turiel afirma que o pico conjunto das fontes não renováveis de energia – o petróleo, o gás natural e o carvão – se verificou no ano de 2018 ou, em linguagem mais simples, que a produção, inevitavelmente, está a descer ao mesmo tempo que os preços começam, inevitavelmente, também a subir.

 

Estou disposto a aceitar que, no caso das matérias-primas energéticas, é imaginável uma combinação diferente da que hoje empregamos e que poderia resolver muitos problemas, mas devo salientar que não se está a trabalhar materialmente na introdução dessa nova combinação que exigiria, ela só, transformações radicais na textura das nossas sociedades. Isto é algo que me leva a concluir que, também neste caso, estamos a chegar tarde.

 

Mencionei que há outros factores aparentemente secundários que, porém, poderiam multiplicar as tensões. Esses factores são a crise demográfica, que castiga sobretudo determinadas regiões do planeta; uma situação social muito delicada, materializada no facto de que metade da população mundial tem que viver com menos de dois dólares diários, um cenário que se anuncia como o da reaparição com muita força da fome e dos problemas de acesso à água em regiões inteiras; o reaparecimento de doenças em forma de epidemias e pandemias de difusão mais fácil e rápida; a difusão dos cancros e das doenças cardiovasculares; um cenário indesejável para as mulheres que anuncia uma ratificação das regras próprias da sociedade patriarcal; o efeito multiplicador da crise financeira na forma de cativação e instabilidade, perda de confiança e incerteza; a proliferação de violências várias, sobretudo sob a forma de autênticas guerras de rapina desenvolvidas pelas grandes potências do norte na procura das matérias-primas de que têm falta; por fim, a idolatria que continuam a merecer a tecnologia e o crescimento económico.

 

A sociedade pós-Colapso

 

Mas há uma terceira observação que quero fazer. Tenho que me questionar sobre os traços previsíveis da sociedade pós-colapso. É fácil intuir que responder a esta pergunta exige doses muito notáveis de especulação. Não sabemos se o colapso vai ser fundamentalmente um processo ou um momento. Não conhecemos quais vão ser as suas causas precisas. Também não conhecemos as respostas que vai provocar. Intuimos que se manifestará com traços diferentes nuns e noutros lugares e também desconhecemos o momento do colapso. De todas estas incógnitas só estou interessado a fazer uma referência à última. As pessoas que, segundo o meu ponto de vista, trabalharam a sério sobre o colapso afirmam que este não é para dentro de 100 ou 150 anos, mas que o período crítico que temos que estudar é o que separa os anos entre 2020 e 2050. De novo, devo sublinhar, ao virar da esquina do momento em que estamos.

 

Embora com todas estas cautelas, suponho que uma das maneiras de responder à pergunta relativa aos traços fundamentais da sociedade pós-colapsista identifica em primeiro lugar uma redução dramática da oferta de energia, que terminará com a civilização do automóvel, tal como hoje a conhecemos, e também com o comércio internacional.

 

Um segundo elemento importante assumirá a forma de um golpe muito forte que sofrerão as instâncias que se caracterizam pela centralização e pelo uso intenso de energia e de tecnologia. Em linguagem mais simples, os Estados, as grandes empresas, as forças armadas, que as serão as principais vítimas, considero eu que ainda bem, do colapso de que falo.

 

No âmbito económico as consequências serão uma redução do crescimento, o encerramento massivo de empresas, o desemprego generalizado, a desintegração dos Estados de bem-estar e a subida dos preços de muitos dos preços dos produtos básicos. Na ausência de crescimento o sistema financeiro soçobrará com problemas visíveis para a saúde e a educação, sendo as principais vítimas as de sempre: os idosos, as mulheres, as crianças. O impacto será muito mais forte nas cidades do que no mundo rural, ainda que nem todas as cidades sofram de forma idêntica esse impacto. Estarão em melhor posição as cidades que dispõem de superfícies agrícolas importantes nos seus arredores, que contam com água em abundância , que estão em encruzilhadas de caminhos e que tenham características mais tradicionais ou antigas. O exemplo das cidades de modelo contrário, que já sofreram os efeitos de outros colapsos, é-nos oferecido pela cidade norte-americana de Detroit, antes a Meca da indústria automóvel, que nas duas últimas décadas já entrou em colapso. Ainda que o cenário possa ser manifestamente mais suave no mundo rural, não vale a pena estarmo-nos a enganar, os efeitos de muitas das políticas desenvolvidas nos últimos anos serão evidentes. Estou a falar da má gestão dos solos, da monocultura, da mecanização e da mercantilização crescentes. Enfim, todos vão perder quantitativamente, em termos gerais, embora dependendo dos respectivos processos mais numas regiões do que noutras.

 

Os movimentos pela transição

 

No livro há dois capítulos em que analiso duas respostas diferentes frente ao colapso. Uma a que chamo a dos movimentos pela transição ecossocial e a outra a que decidi identificar como ecofascismo.

 

Se tiver que resumir a proposta dos movimentos pela transição ecossocial identificarei quatro verbos: decrescer, rerularizar, destecnologizar, despatriarcalizar, e um último, descomplexizar, as nossas sociedades.

 

Porquê, em primeiro lugar, decrescer? Se vivemos num planeta com recursos limitados não parece que tenha muito sentido a aspiração a continuar crescendo ilimitadamente. Não sei qual é hoje, exactamente, a pegada ecológica portuguesa, mas parece-me que é 2,3. A pegada ecológica espanhola é de 3.0. Isto significa que para manter as actividades económicas hoje existentes em Espanha precisamos de três vezes o território espanhol. Como é que se resolve este problema? Através de uma pressão inaudita sobre os direitos dos elementos das gerações vindouras, sobre os direitos de muitos dos habitantes dos países do sul e sobre os direitos dos indivíduos das várias espécies com que, em teoria, compartilhamos o planeta.

 

Neste âmbito, a perspectiva de decrescimento afirma que no norte desenvolvido temos, inevitavelmente, que reduzir os níveis de produção e de consumo, mas reclama a introdução de regras muito diferentes das que hoje aplicamos. No que é que estou a pensar?  Na necessidade de recuperar a vida social que fomos desperdiçando, absorvidos como estamos pela lógica da produção, da competitividade e do consumo. O ócio criativo frente às formas de ócio, sempre mercantilizadas, que oferece o sistema de que padecemos. A repartição do trabalho, uma velha reivindicação sindical que infelizmente foi morrendo com o passar do tempo. A necessidade de reduzir as dimensões de muitas das infraestruturas produtivas, administrativas e de transporte que hoje utilizamos. A urgência de recuperar a vida local, num cenário de reaparição de fórmulas de democracia directa e de autogestão. Por fim, no âmbito individual, a sobriedade e a simplicidade voluntárias.

 

O segundo verbo, rerularizar, tem um significado mais fácil de compreender. Muitos dos nossos avós deixaram o mundo rural para passarem a viver nas cidades onde achavam, legitimamente, que o cenário era mais habitável. Hoje assistimos, incipientemente, a um processo de sinal contrário. De qualquer modo, as pessoas que são, mesmo moderadamente, conscientes do risco de um colapso geral do sistema sabem que uma das poucas respostas eficientes que dispomos para esse efeito é a que reivindica recuperar muitos dos elementos da sabedoria popular dos nossos camponeses mais velhos e muitas das práticas quotidianas do mundo rural.

 

Admitirei de bom grado que o terceiro verbo, destecnologizar, acarreta uma certa dimensão provocatória. Se tiver que usar este argumento com uma maior moderação direi que acho que estamos na obrigação de analisar criticamente qual é a natureza de muitas das tecnologias que o sistema nos presenteia porque suspeito que não têm essa natureza emancipadora, libertadora, que amiúde lhes atribuímos.

 

John Zerzan é o principal teórico do anarco-primitivismo. Afirma, de maneira rotunda que todas as tecmologias criadas pelo capitalismo têm por detrás a pegada da divisão do trabalho, da hierarquia e da exploração. É um argumento sério que é preciso ter em consideração. Eu já disse que não vou tão longe, limito-me a reclamar que analisemos criticamente a natureza das tecnologias que o sistema gratuitamente nos oferece.

 

Falei, em quarto lugar, da urgência de despatriarcalizar as nossas sociedades. Daqui a pouco vou defender a construção de espaços autónomos, autogestionados, desmercantilizados e despatriarcalizados. Esses espaços existem já mas, em certos casos, promovem o caminho da autogestão da mercantilização, quando conservam impolutas a maioria das regras do jogo próprias da sociedade patriarcal.

 

Segundo uma estimativa, 70 por cento dos pobres e 78 por cento dos analfabetos existentes no planeta são mulheres. Os dados são muito significativos. Não estamos a falar de 52 por cento de mulheres pobres frente a 48 por cento de homens. Estamos a falar da distância abismal que separa 70 de 30 por cento. Segundo outra estimativa, as mulheres realizam 67 por cento do trabalho e recebem 10 por cento do rendimento. Nestas condições afirmar que os problemas atávicos de marginalização, simbólica e material, das mulheres está em vias de uma feliz resolução consiste em voltar as costas à realidade.

 

Falei, por fim, na urgência de descomplexizar as nossas sociedades. Aceitamos sociedades cada vez mais complexas com uma consequência muito delicada: cada vez somos mais dependentes, cada vez somos menos independentes. O meu amigo Ramón Fernández Durán,  que morreu em Madrid há 8 anos, nos seus dois últimos livros quase póstumos repetiu uam e outra vez uma ideia. Dizia que muitos dos deserdados do planeta, habitantes dos países do sul, estão, paradoxalmente, em melhor posição do que nós para fazer frente ao colapso que se avizinha. Porquê? Vivem em pequenas comunidades humanas, mantiveram uma vida social muito mais rica do que a nossa, preservaram uma relação muito mais fluida com o meio natural e são, paradoxalmente, muito mais independentes.

 

Às vezes pergunto-me sobre o que aconteceria num lugar como este em que vivemos se deixassem de chegar os fornecimentos de petróleo. Tudo isto viria abaixo literalmente da noite para o dia. Se queremos recuperar a nossa independência teremos, inevitavelmente, que aceitar sociedades menos complexas.

 

O perigo do ecofascismo

 

Já disse que o livro inclui outro capítulo que se interessa pelo que decidi chamar ecofascismo. Sei que o termo é moderadamente surpreendente. Estamos acostumados a pensar que o prefixo eco acompanha realidades positivas, ou, pelo menos, realidades neutras. Devo lembrar-vos, porém, que no partido nacional-socialista alemão, o partido de Hitler, actuou um activo grupo de carácter ecologista que defendia o regresso ao mundo rural, que criticava duramente algumas das dimensões mais negativas da urbanização e da industrialização, e que postulava o desenvolvimento de práticas vegetarianas. Tudo isso, naturalmente, a favor de uma raça escolhida, que devia impor regras de jogo sobre os demais.

 

Há uns anos foi traduzido em Espanha um livro dum jornalista alemão chamado Carl Amery, chamado em espanhol “Auschwitz: comienza el siglo XXI?”, cuja tese principal é a de que estaríamos muito errados se concluíssemos que as políticas que os nazis alemães defenderam há 80 anos atrás remetem para um momento histórico singular, conjuntural e, por isso, felizmente, irrepetível. Pelo contrário, Amery convida-nos a estudar detalhadamente essas políticas porque podem reaparecer nos próximos anos, já não defendidas por grupos neonazis, ultra marginais, mas sim preconizadas por alguns dos principais centros de poder político e económico, cada vez mais conscientes da escassez geral que se avizinha e cada vez mais firmemente decididos a manterem em poucas mãos esses recursos escassos.

 

É fácil intuir que no miolo da proposta ecofascista há uma discussão demográfica que assenta na ideia de que sobra gente no planeta, de tal maneira que se trataria, na versão mais suave, de marginalizar os que sobram, e que é o que já fazem. Na versão mais dura, de exterminar quem sobra.

 

Algumas conclusões sobre o que aí vem

 

Vamos à sexta e última observação que quero fazer-vos, em forma de várias conclusões rápidas.

 

A primeira, que assume a forma de uma pergunta: conseguiremos evitar o colapso? Pela minha intuição a resposta é não. O que está ao nosso alcance é mitigar a manifestação de algumas das suas construções mais negativas e, provavelmente, adiar um bocadinho no tempo essa manifestação.

 

Qual é a segunda conclusão?

 

Nos círculos em que me movo a discussão sobre o colapso provoca duas reacções diferentes.

 

A primeira é cruamente realista e afirma que não temos outra possibilidade senão esperar a chegada do momento do colapso, porque esta é a única forma de fazer com que a maioria dos habitantes das nossas sociedades perceba quais são as suas obrigações. Esta perspectiva é muito realista, mas é desmotivadora, porque tem um certo carácter imobilista ou imobilizador e porque parece ignorar que o colapso, por definição, vai ter consequências dramáticas na forma duma multiplicação espectacular dos problemas e, paralelamente, duma redução das nossas possibilidades de os resolver.

 

A segunda das respostas assume um carácter voluntarista, na medida em que dispõe dum apoio social muito limitado. Afirma que temos que sair com urgência do capitalismo e que hoje o que está ao alcance das nossas mãos é abrir espaços autónomos, autogestionados, desmercantilizados e despatriarcalizados. Já antes disse que esses espaços já existem. Estou a pensar no que significam, no cenário espanhol, muitas eco-aldeias,  cooperativas integrais, grupos de consumo, formas de banca ética e social que foram aparecendo ou o movimento de trabalhadores que em regime autogestionário e cooperativo tomaram o controlo de empresas que estavam à beira de fechar.

 

Tenho boa relação pessoal com alguns dos economistas social-democratas espanhóis mais importantes, mas muitas dissensões. Parecem estar convencidos de que a sua tarefa principal consiste em convencerem-me de que é muito importante criarem, por exemplo, um banco público. Eu a esse respeito faço-lhes uma pergunta delicada: quanto tempo temos á nossa frente? Se o prognóstico que antes invoquei de que existe um período crítico que vai de 2020 a 2050 é certo estaríamos na obrigação de modificar rápida e radicalmente a maioria das regras de jogo próprias das nossas sociedades.

 

Esses espaços autónomos, que defendo, desde o meu ponto de vista, só terão um significado pleno se forem capazes de se federarem entre si e fizerem aumentar a sua capacidade de confrontação com o capital e com o Estado. Desde logo, é preciso sublinhar, que há uma grande divisão de opiniões no que diz respeito ao que deve ser a sua função principal. Alguns respondem dizendo que a sua tarefa principal consiste em evitar o risco do colapso. Outros  começamos a responder dizendo que a sua tarefa principal consiste em funcionar como escolas que nos permitam aprender o que devemos fazer depois do colapso.

 

Como terceira conclusão, acho que uma das maiores habilidades do sistema de que padecemos é a de conseguir evitar que façamos as perguntas importantes. Proponho um exemplo do que quero dizer. O discurso dominante afirma que temos que procurar novas fontes de energia que permitam manter o que se alcançou até agora e talvez acrescentá-lo. Qual é a pergunta que conseguem que não façamos? E é a seguinte: interessa-nos realmente manter isto ou teríamos muitas vantagens se prescindíssemos de muitos dos elementos que compõem hoje o sistema em que vivemos? Imaginem que amanhã o presidente da Federação Russa, o senhor Putin, anunciava que o seu país tinha descoberto nas águas do oceano glaciar ártico um gigantesco jazigo de hidrocarbonetos que permitia que o consumo planetário se mantinha durante mais uma década de acordo com os níveis actuais de consumo. Alguém pensa a sério que aproveitariam esses 10 anos para repensar criticamente qual é a natureza das nossas sociedades? Dou como certo que dentro de 10 anos teríamos que formular perguntas como as que agora estou a formular.

 

Qual é a quarta e penúltima observação, à maneira de conclusão, que quero fazer. Desde o meu ponto de vista as forças políticas emergentes em Espanha e estou a pensar no caso do Podemos, e as não tão emergentes, propõem discussões interessantes relativamente  ao regime de que padecemos, mas nada ou muito pouco dizem da natureza do sistema que está por detrás desse regime. Em que estou a pensar quando falo do regime? Na discussão sobre a corrupção, o bipartidarismo, no caso espanhol a própria discussão sobre a república e a monarquia. Mas em que penso quando estou a falar no sistema, em todas aquelas matérias que não interessam a todas as pessoas que opinam nas rádios ou nas televisões? No capitalismo, no trabalho assalariado, na mercadoria, na alienação, na exploração, na sociedade patriarcal, nas guerras imperiais, na crise ecológica, no próprio colapso.

 

A partir desta perspectiva não posso fazer outra coisa senão chamar a atenção sobre o meu cepticismo ante a possibilidade de que a resposta a tantos problemas proceda das instituições. Estas, infelizmente, estão marcadas pelos interesses de poderosas corporações económico-financeiras. No melhor dos casos abraçam horizontes próprios dum capitalismo verde que considera a ecologia como uma fonte adicional de lucros e desenvolvem políticas sempre de curto prazo estritamente alinhadas com as aberrações da lógica eleitoral.

 

A quinta e última das minhas conclusões prende-se com o seguinte. Quando escrevi o capítulo do livro relativo aos movimentos pela transição ecossocial imediatamente percebi que a maioria dos autores que trabalhavam sobre esta matéria viviam duma ideia libertária, fosse de maneira consciente ou inconsciente. No fundo, o que estavam a defender como alternativa era a auto-organização das sociedades, desde baixo, a partir da autogestão, da democracia directa e do apoio-mútuo.

 

Há bastantes anos, estando um dia em companhia de dois colegas professores de ciência política, a determinada altura começaram a falar sobre o programa duma matéria intitulada Ideologias Políticas Contemporâneas. Um deles afirmou que não se devia incluir o anarquismo nesse programa porque não era uma ideologia política contemporânea. Eu, que até aí estive calado, preferi intervir para lhe dar razão e disse-lhe: Tens toda a razão. O anarquismo não é uma ideologia política contemporânea. É uma ideologia política do futuro. Ou, pelos menos, é-o aos olhos daqueles que pensamos que o capitalismo vai, de uma maneira muito clara, em direcção ao colapso terminal, o que nos obriga a considerar seriamente a actualidade de um projecto que reivindica a autogestão, a democracia directa e o apoio mútuo.

 

Obrigado por me terem escutado.

 

(Texto da alocução inicial de Carlos Taibo na apresentação da tradução portuguesa do seu livro “ Colapso”, editado pela Letra Livre e pelo jornal Mapa, na tarde de 24 de Março de 2019, nas Oficinas do Convento em Montemor-o-Novo. O texto foi retirado da gravação, com ligeiras alterações devidas à transformação da linguagem coloquial em linguagem escrita).

 

c.

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